De rastro à memória de água à memória digital

Esse texto foi apresentado na conferência BIOLOGIA, EDUCAÇÃO, INDÚSTRIA 4.0 E SOCIEDADE organizada pelo Curso da Biologia na UNINORTE-ACRE (Brasil) no dia 28 de Outubro de 2020.

Prezados Professoras e professores do Curso de Ciências biológicas do Centro Universitário UNINORTE em Rio Branco-Acre,

Colegas acadêmicos, amigas e amigos Acrianos, concidadãos,

Boa noite,

Agradeço a UNINORTE, e a amiga estimada Professora Solange Chalub pelo convite e pela boa iniciativa de pensar a biologia em relação com a tecnologia em um mundo caracterizado pelas grandes transformações e mutações biológicas (com a COVID-19) e societais (no senso amplo, quanto aos efeitos da pandemia sobre o indivíduo e a sociedade).

Estou muito feliz em estar com vocês neste evento e desejo para vocês todos uma boa saúde e muito sucesso nos seus projetos apesar das complicações e das dificuldades.

Rastro

Hoje eu trago para este evento, que compartilho com biólogos interessados em abordagens multidisciplinares, a noção de rastro para pensar a memória e sua importância na era digital, pandêmica e pós-pandemia.

O debate, a que me refiro, sobre o rastro e a rastreabilidade digital, vem da França. A “Escola francesa sobre o rastro” ou a “Nova Escola Francesa do pensamento do rastro”, como alguns chamam, é um grupo de professores e pesquisadores que questionam a noção de rastro e seu uso nas disciplinas desde os últimos 10-11 anos. A noção de rastro não tem um significado único nem um uso só. Os trabalhos reúnem vários entendimentos, interpretações e perspectivas que se referem às áreas científicas e pontos de vistas diversificados. Questionar o que significa o rastro, nos ajuda para entender problemáticas contemporâneas como a pandemia de Covid-19 e a cultura digital, mas traz também argumentos filosóficos sobre a existência, a origem do universo e a evolução do ser humano.

Na ciência, os rastros nos mostram a história da evolução:

As primeiras partículas, os átomos, moléculas, estrelas, células, organismos, seres vivos, até os animais curiosos que somos (…) todos se sucedem na mesma cadeia, são todos carregados pelo mesmo movimento (…) os elementos que compõem nossos corpos são aqueles que formaram o universo (Reeves H., de Rosnay J., Coppens Y., Simonnet D., 1995)1.

Como diz Jacques Derrida:

Cada rastro é um rastro de um rastro. Nenhum elemento nunca está presente em qualquer lugar (nem simplesmente ausente), há apenas rastros.

Béatrice Galinon-Mélénec2, Professora Emérita em Estudos da Comunicação na Université Le Havre Normandie na França e fundadora do Human Trace UNITWIN Complex Systems Digital Campus UNESCO, um laboratório digital que dirige várias publicações sobre o “rastro”, define o rastro como uma parte do real que um indivíduo interpreta como consequência. Nesta perspectiva, ela propõe colocar os termos “pegada”, “índice” e “marca” em subgrupos dentro da categoria “rastro”. Ela apresenta o paradigma de “Homem-Rastro” (Homme-Trace) postula que:

O ser humano é ao mesmo tempo, produtor de rastros e construto de rastros, operando em ciclo, um sistema em que cada um constrói o outro em um continuum (Galinon-Mélénec, 2011).

Uma outra maneira de ver o rastro é proposta por Alain Mille, Professor Emérito na informática e Inteligência Artificial na Universidade Claude Bernard em Lyon.

De acordo com ele:

Um rastro é constituído a partir de pegadas deixadas voluntariamente ou não no ambiente durante um processo. O rastro assim construído é escrito (ou não) no ambiente usado como suporte de memória (como um processo)3.

Segundo ele, a natureza das pegadas é variável e qualquer processo pode ou não produzir pegadas mais ou menos persistentes, inscrevendo-se no ambiente e então distinguíveis por observadores informados como um rastro do processo inicial. A observação é, portanto, um processo cognitivo para distinguir a pegada como um rastro de algo que pode fazer sentido.

Desse modo, o rastro pode ser entendido como uma consequência/uma observação e interpretação de uma inscrição produzida por um processo. Pois então há primeiramente o processo, que faz inscrição/ou pegada no ambiente onde acontece a interação. A pegada se torna rastro quando ela é percebida e é associada com um sentido ou uma significação. Vamos pensar a vida na Terra com sua biodiversidade e seu ambiente transformante, dois temas que os biólogos estudam e analisam.

Se tomaríamos a hipótese que a origem da vida em nossa planeta Terra é aquática, podemos dizer que a água é uma pegada de algo, de um processo que permitiu a sua formação ou a sua chegada na Terra. Ela se tornou rastro quando nós, seres inteligentes, entendemos essa substância e determinamos suas qualidades: é um líquido incolor, sem cheiro e transparente, composto de hidrogênio e oxigênio, de fórmula química H2O. Ela é um dos principais componentes da biosfera e cobre a maior parte da superfície do planeta.

Cerca de 71% da superfície da Terra é coberta por água em estado líquido. Do total desse volume, 97,4% aproximadamente, está nos oceanos, em estado líquido. A água dos oceanos é salgada: contém muito cloreto de sódio, além de outros sais minerais. Mas a água em estado líquido também aparece nos rios, nos lagos e nas represas, infiltrada nos espaços do solo e das rochas, nas nuvens e nos seres vivos. Nesses casos ela apresenta uma concentração de sais geralmente inferior à água do mar. É chamada de água doce e corresponde a apenas cerca de 2,6% do total de água do planeta. Cerca de 1,8% da água doce do planeta é encontrado em estado sólido, formando grandes massas de gelo nas regiões próximas dos pólos e no topo de montanhas muito elevadas. As águas subterrâneas correspondem à 0,96% da água doce, o restante está disponível em rios e lagos4.

A água é a fonte de toda a vida. Ela apareceu na Terra cerca de 4 bilhões de anos atrás. E é gracas às minúsculas “algas azuis” (verdes-azuis) que a vida surgiu. Essas algas azuis, da classe das oxifotobactérias5, realizam a fotossíntese oxigenada e podem, portanto, transformar a energia solar em energia química que pode ser utilizada pela célula fixando dióxido de carbono (CO2) e liberando oxigênio (O2).

Assim, a hipótese que a água possibilitou o surgimento da vida na Terra, coloca a água como rastro da vida. Na representação mental e simbólica que rastreamos sobre o significado do rastro, falamos cronologicamente de vários elementos:

No início tem o processo que deixa uma inscrição em um ambiente determinado. Essa inscrição é uma pegada do processo que aconteceu. Quando essa pegada é observada/estudada, ela ganha um senso/significado e se tornaum rastro/consequência.

Processo (interação/ambiente) → inscrição → pegada → observação (interpretação) → rastro (consequência).

Assim a água é um rastro de um processo que ele mesmo é rastro de algo, que nós ainda não conhecemos. Este processo ainda é um assunto de um debate científico baseado em duas hipóteses: interna e externa. A primeira sugere que a água deriva da desgaseificação do interior da Terra no momento de sua formação; a segunda propõe a sua chegada na Terra do espaço por asteroides e cometas. O que importa aqui é que a água está incluída em um sistema complexo e que está em interação permanentemente com seus ambientes. Isto nos leva para uma nova hipótese formulada nos anos 80 do século XX por Jacques Benvéniste6, médico e imunologista francês, sobre a memória da água.

Memória da água

Na sua hipótese, Benvéniste enfatiza que a água tem a capacidade de reter propriedades de substâncias que nela estiveram diluídas, mas que não mais se encontram ali. Por consequência a água tem uma memória7. Uma hipótese que produziu polêmicas científicas e foi muito criticada na medicina. O estudo8 realizado pelo pesquisador e sua equipe mostrou que as moléculas da matéria teriam uma forma de memória que permanece, mesmo após fortes dissoluções, ao passo que qualquer rastro físico da molécula desapareceu por completo. Seria uma espécie de “pegada”, da memória, ainda ativa, embora indetectável. Ou seja “as moléculas da água de alguma forma retiveram uma memória dos anticorpos com os quais haviam entrado em contato anteriormente, de modo que um efeito biológico permaneceu quando os anticorpos não estavam mais presentes”9.

Assim sendo, qualquer substância que entra em contato com a água deixa rastros. A água tem a capacidade de receber e registrar a pegada de qualquer influência externa, memorizando tudo o que está acontecendo em seu ambiente próximo. A composição química da água permanece como está, mas sua estrutura reage, como o sistema nervoso reage a cada irritação. Isso é dito, podemos pensar a água como um disco rígido cheio de informações? Se for possível, nós precisamos conhecer sua organização, seu novo alfabeto, porque a estrutura molecular é o alfabeto da água.

A água, presente nos corpos de muitos animais incluindo os humanos, é uma ação de informação10. Porque dentro do corpo humano tudo está conectado. As informações circulam além do espaço e do tempo. E a estrutura da água é fundamental e é a chave para muitos fenômenos biológicos e físicos.

Esse postulado mostra a dimensão informacional e comunicacional da água e consolida seu entendimento como rastro/consequência de processos diversos. O fenômeno elétrico mínimo no corpo humano permite que as células se comuniquem umas com as outras. Essa comunicação intercelular pode ser modificada pelos campos elétrico, ambiental e eletromagnético? Se isso for provado, poderíamos identificar a presença de vírus ou bactérias em conexão com patologias infecciosas por meio de sinais magnéticos eletrônicos? Poderíamos parar a transmissão do SARS-CoV-2 que causou a morte de centenas de milhares de pessoas no mundo e perturbou a vida econômica e social? A minha pergunta vem de uma esperança mais de que de uma evidência biológica, por que não sou biólogo e não me permito teorizar na biologia molecular ou na medicina. E a resposta, se houver uma, fica nos rastros, que constituem a memória da água, quem poderiam trazer, talvez, clarificações e novas perspectivas.

Memória digital

Os rastros biológicos e antropológicos, fragmentos de ossos, nos mostram que a origem de homem vem dos Hominínios (Hominina) que compõem uma subtribo de primatas Hominídeos11. O fóssil mais antigo atribuído ao gênero Homo foi descoberto na Etiópia e remonta a 2.8 milhões de anos atrás.

O Homo sapiens é a única espécie ainda viva da família dos Hominídeos e é o único representante atual do gênero Homo, estando as demais espécies extintas. A espécie surgiu há cerca de 300-350 mil anos na região leste da África. Ele distingue-se por sua capacidade de exteriorizar, não apenas seu corpo, mas sobretudo suas funções cognitivas12. Com a ferramenta, o Homo sapiens coloca sua memória fora de si mesmo, adicionando às memórias genéticas e nervosas uma terceira memória, que abre a possibilidade de um patrimônio e de uma cultura.

Se reduziríamos a memória a uma capacidade psíquica de registrar a experiência vivida pelo sujeito, nós negamos a ela qualquer dimensão coletiva. De acordo com Louise Merzeau (2006)13, a memória é outro nome da transmissão, opondo-se ao presente comunicativo a profundidade do tempo longo – aquele dos arquivos, afiliações e rituais.

No seu Livro Rogue Archives: Digital Cultural Memory and Media Fandom (2016) [Arquivos malandros: memória cultural digital e fãs de mídia], a pesquisadora americana Abigail De Kosnik examina a prática de arquivamento na transição da mídia impressa para o digital. Ela escreve que os “Estudos em Memória” remontam ao menos até o Fedro, escrito por Platão no século 4; mas o campo em sua forma contemporânea foi iniciado por Maurice Halbwachs no seu livro Les Cadres Sociaux de la Mémoire (1952) [Os quadros sociais da memória], no qual Halbwachs articulou sua teoria de memória coletiva. Segundo ele a memória é menos o produto de uma apreensão do que de uma construção, onde a montagem de fragmentos exige a retransmissão dos quadros sociais da linguagem, do espaço e do tempo. Halbwachs argumenta que, como os indivíduos formam suas memórias na sociedade, é também na sociedade que eles recordam, reconhecem e localizam suas memórias. Eu entendo então que essas memórias são feitas de rastros individuais e coletivos.

O digital

Cada era sociotécnica da memória produziu sua própria “memória da totalidade”. Durante muito tempo foi sem dúvida a biblioteca que representou esta totalidade. Até o advento da tecnologia digital, podíamos distinguir duas classes de objetos técnicos:

  1. Memórias externas dedicadas ao registro das informações;
  2. Ferramentas e instrumentos destinados a prolongar uma faculdade física ou cognitiva.

Na era digital, qualquer máquina registra e processa informações. De automóveis a computadores, câmeras a consoles de jogos e telefones a eletrodomésticos, a memória se tornou um componente em todos os nossos artefatos.

A web é ao mesmo tempo um novo meio que se complementará e / ou competirá com os meios anteriores, mas também uma meta-mídia (meta-meio) que engloba todos os outros e que os transformará em uma indústria de memória através das possibilidades de acesso transversal e arquivo permanente.

Vannevar Bush, um dos pioneiros da Internet, apresenta em um artigo publicado em 1945 [Bush V. (1945). Como podemos pensar. The Atlantic], um aparelho que se chama Memex, que é um dispositivo eletrônico conectado a uma biblioteca capaz de exibir livros e mostrar filmes. Bush descreve o Memex como uma extensão da memória humana: “é um suplemento ampliado e íntimo de sua memória (humana)”. [It is an enlarged intimate supplement to his memory].

Nos ambientes digitais, toda atividade deixa rastros, tudo é memorizado automaticamente, instantaneamente, muitas vezes sem a nossa vontade, sem o sabermos e sem o nosso controle. A hipermemória, da qual pensamos que a internet vai realizar, é apenas uma memória “maquinica”, uma anti-memória . Ela é uma memória de conteúdos, relações, comportamentos (Merzeau, 2012)14. Tudo é rastro, e as redes vão exigir esforço, investimento, regulação, para esquecer ou para organizar e produzir memória. No livro Rastros digitais: da produção para a interpretação [Traces numériques : de la production à l’interprétation (2013)], orientado pelos Béatrice Galinon-Mélénec e Sami Zlitni da Universidade Le Havre Normandie, os autores reunidos concordam com a materialidade da inscrição digital e com a ideia de que o estatuto de rastro dado à inscrição digital advém da forma como a olhamos, do leitor receptor, das relações e interações com o ambiente.

A água e o documento

Voltamos para a memória da água. A inscrição que faz pegada nos faz pensar, nós da área da informação e da comunicação, no documento ou no fragmento documental. Por quê? Só existe documento quando um objeto material ou eletrônico tem forma, conteúdo e função. Seguindo Jean-Michel Salaün , um documento é representado em três dimensões: forma, conteúdo e meio (Salaün, 2011): o que é visto, o que é lido e o que é conhecido [le Vu, le Lu et le Su].

A função do documento é a memória. E esse ponto é muito importante. Nós registramos informações sobre um objeto para transmiti-lo ou preservá-lo para referência. A pegada carrega informações gravadas que o rastro lhe confere valor e significado. Se a água, em sua interação com os diferentes ambientes em que circula, registra diversas informações (a memória da água), essas inscrições / gravações formam um conteúdo. A água, neste caso, é um objeto material que se assemelha ao documento porque não para na fase de registro da informação em suas moléculas, mas constrói sua memória, que é a função de memória do documento. A última função dá à água a capacidade de superar barreiras do espaço e do tempo para transmitir informações e assim fazer parte de uma memória coletiva, que é a nossa.

Poderíamos aprender desta hipótese/modelo que a água nos mostra, para investir nossos rastros em projetos de memória? A pandemia e a aceleração na transformação digital em todos os cantos nos levam para pensar nossos rastros em uma continuidade, em uma comunidade/um contexto, em memória compartilhada. Se a coleção de rastros se abre para uma reapropriação, ela implica também uma coletivização desses rastros. Já que tudo o que fazemos hoje, na era pandêmica, é uma escrita digital, uma inscrição, a memória que retomamos o controle deve, antes de mais nada, ser exportável, independente de sistemas e ferramentas, protegível, pesquisável, configurável e arquivável. Seu uso não deve ser restrito a especialistas em gestão da informação, mas tão acessível para todo mundo. São desafios que interrogam a biologia, como todas as disciplinas e os setores, em nosso mundo digital, pandêmico e pós-pandemia.

Muito obrigado pela sua atenção.


1Reeves H., de Rosnay J., Coppens Y., Simonnet D. (1995). La plus belle histoire du monde, Le Seuil, Paris.

2Editora-chef do “Ichnos-Antropos. Le carnet de L’Homme-trace”https://onhumantrace.hypotheses.org/

3Mille A. (2013). Traces numériques et construction de sens, in Galinon-Mélénec B., Zlitni S., Traces numériques : De la production à l’interprétation, CNRS Éditions, Paris, p. 111.

4Só Biologia, A Água no Planeta, https://www.sobiologia.com.br/

5Cyanobacteria, Wikipedia, https://fr.wikipedia.org/wiki/Cyanobacteria

6Em 1988, Jacques Benveniste publicou na revista científica britânica Nature um trabalho de pesquisa sobre uma memória hipotética da água.

7Ina (2019). 1988, Jacques Benveniste et la mémoire de l’eau, https://www.ina.fr/contenus-editoriaux/articles-editoriaux/1988-jacques-benveniste-et-la-memoire-de-l-eau/

8Davenas, E., Beauvais, F., Amara, J. et al. Human basophil degranulation triggered by very dilute antiserum against IgE. Nature, vol. 333, p. 816–818 (1988). https://doi.org/10.1038/333816a0

9Ball Ph. (2004). The memory of water, https://www.nature.com/news/2004/041004/full/news041004-19.html#B1

10Milbert B. (2016). Mémoire de l’eau et Biologie numérique, https://www.youtube.com/watch?v=pEOusCBaDg4

11Hominidae, Wikipédia, https://fr.wikipedia.org/wiki/Hominidae

12As funções cognitivas são as habilidades de nosso cérebro que nos permitem comunicar, perceber nosso ambiente, concentrar-nos, lembrar um evento ou acumular conhecimento.

13Merzeau L. (2006). Mémoire. Médium, vol. 1, n° 9, p. 153-163.

14Merzeau L. (2012). L’industrialisation de la mémoire, Colloque Les Métamorphoses numériques du livre II, l’Agence régionale du Livre Paca, Aix-en-Provence.

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Biologia e cultura digital: sistemas, vírus e trabalho colaborativo

Este texto foi apresentado na 1ª Jornada Acadêmica Virtual do curso de Ciências Biológicas do Centro Universitário Uninorte, intitulada “Meio Ambiente & Cultura Digital em frente à Crise Mundial Sanitária”, em Rio Branco – Acre no Brasil em junho 2020.

Bom dia a todas, bom dia a todos,

Agradeço o convite de minha amiga estimada, a Professora Solange Maria Chalub Bandeira Teixeira, coordenadora pedagógica do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas no Centro Universitário Uninorte em Rio Branco-Acre. É uma honra para mim estar com vocês neste evento, a primeira feira acadêmica virtual do curso de Ciências Biológicas da Uninorte, que está acontecendo na cidade de Rio Branco, cidade amada, para compartilhar com vocês minha reflexão e ouvir as suas. Meus cumprimentos para a diretoria institucional do Centro Universitário, pelas professoras e pelos professores participantes neste evento, as professoras admiradas Janaína Almeida, Sandra Galeotti e Vera Reis, pelo professor Janeo Nascimento da Silva, amigo querido, pelos acadêmicos do sétimo período de Ciências Biológicas da Uninorte e pelos convidados.

Peço desculpa de não poder acompanhar todas as sessões por causa de fuso horário e de minhas responsabilidades familiares. Por entanto, desejo para cada uma e cada um de vocês, um webinário produtivo e uma boa saúde hoje e sempre.

Por que falamos hoje da biologia e da cultura digital? Qual é o relacionamento entre os dois? Qual é a vinculação com a pandemia de Covid-19? Como explicar este cruzamento, que eu escolhi no título de minha fala? Por que eu, que não sou biólogo, vou falar da biologia, e vocês, que não são da área da informação nem da comunicação, vão falar ou se interessar na tecnologia digital ou na cultura digital?

A minha reflexão hoje sobre a biologia e a cultura digital nesta conferência tem vários motivos. Fora do fato que eu conheci vocês, a turma da biologia, em Rio Branco-Acre em 2018 durante minha missão do ensino e da pesquisa no Brasil – e de sua presença importante e eficiente nas minhas palestras lá – a biologia e o digital têm muitas conexões. Eles enfrentam hoje, uma situação complicada imposta pela pandemia que afeta principalmente nosso organismo biológico e consequentemente nosso ambiente, nossa interação e nossa coexistência.   

Deveríamos ter falado sobre a biologia e a cultura digital desde um longo tempo, e não esperar a invasão do vírus Sars-Cov-2 em nossas sociedades e nossas vidas para pensar nisto. A pandemia nos lembra, que nós humanos, antes de seremos sujeitos digitais, usuários da tecnologia, somos animais (sociais) frágeis e vulneráveis aos ambientes onde vivemos. Ela nos alerta que não vivemos sozinhos na terra, mas com outras espécies, e que a nossa arrogância humana tem limite e tem consequências graves quando se torna exterminação, destruição e atrocidade. Ela nos lembra também de nossa animalidade fundamental, o “fundamento biológico de nossa humanidade”, como a antropóloga francesa Françoise Héritier a chamou.  

Os sistemas (pensamento sistemático)

Quando penso na biologia, a primeira coisa que me vem à cabeça é o sistema. A biologia é a ciência da vida. Ela cobre parte das ciências naturais e da história natural dos seres vivos. Ela expande-se do nível molecular, ao da célula, depois do organismo, ao nível da população e do ecossistema. Todas estas espécies são feitas de sistemas. E todas funcionam sistematicamente para dar a vida. A tecnologia digital é basicamente computacional e funciona também em sistemas. O ecossistema digital é feito de redes, de sistemas, que combinam seres humanos, objetos conectados, linguagens que permitem os usos sociais e culturais. Estes elementos interagem de modo animado para produzir uma realidade e fazer sentido. O ecossistema digital é dinâmico, como os organismos biológicos.

Urie Bronfenbrenner, psicólogo e pesquisador americano, divulga nos anos 1970-1980 sua teoria conhecida como “a ecologia do desenvolvimento humano”, segundo a qual os diferentes ambientes nos quais as pessoas participam influenciam diretamente sua mudança e seu desenvolvimento cognitivo, moral e relacional. Ele apresenta 5 níveis de sistemas que constroem o ambiente de cada organismo/indivíduo: Microsistema, Mesosistema, Exosistema, Macrosistema e Chronosistema.

Em oposição ao determinismo biológico, os interacionistas (movimento interacionista simbólico) estudaram a interação social e a construção da identidade em uma visão sistemática colocando o indivíduo no sistema dele para entender seu comportamento e seu lugar na sociedade. A comunicação, como a psicologia social, define o indivíduo em relação ao sistema onde ele está interagindo.

Em biologia, a gente fala de moléculas portadoras de informações quando nos referimos às características funcionais do DNA. Os sistemas veiculam a informação de um componente para o outro para funcionar e comunicar. Seja no interior de um sistema ou em relacionamento entre dois sistemas ou mais, é a informação que mantém a atividade do sistema ou permite a sua transformação.  

No ecossistema digital a informação é binária (digital) e se constrói em vários níveis: é uma pegada, é um rastro, é um dado, é um metadado até chegar à informação. Se torna um conhecimento quando ela faz parte de uma estrutura cientifica aprovada e adquira a habilidade para explicar e mudar fenômenos e situações. Segundo Louise Merzeau, Professora e pesquisadora francesa, que tem trabalhos relevantes sobre a mediologia, a memória, a cultura e os rastros digitais, a informação e o processamento de dados digitais nos envolvem hoje. São muitos objetos conectados que nos cercam, e outros que vão ser conectados com informação, com dados, com cálculo, sendo necessário avançar para um pensamento ambiental, ecológico para pensar e entender a cultura digital. Este processamento me faz pensar de novo na biologia. A informação que circula dentro dos sistemas biológicos (humanos, animais, naturais etc.) não é somente uma entidade para comunicar, mas também para preparar ou permitir a mutação e a evolução do organismo no ambiente dele. Sem se colocar na posição do biologismo ou mesmo de fatalismo, os trabalhos de Charles Darwin e Alfred Russel Wallace, sobre a Teoria da Evolução, mostram que a luta pela existência se refere às diferentes habilidades dos indivíduos para sobreviver e as adaptações são sempre relacionadas a um ambiente em mudança. Os dois antropólogos e biólogos britânicos admitem que, na maioria dos casos, órgãos e instintos exibem variações infinitesimais que influenciam o vigor dos organismos e sua “chance de sobrevivência”. Eles deduzem que há uma tendência para as espécies formarem novas variedades indefinidamente e as perpetuarem. A seleção natural, como eu entendo, se refere à interação entre a espécie e o ambiente, mas ultrapassa a consciência e o controle do organismo para administrar e gerir suas condições. E para dizer que a força e a aptidão do dinamismo da mutação e da evolução agem em sistemas onde o indivíduo, como organismo biológico, pode influenciar e ser influenciado pelos outros componentes (biológicos, naturais, políticos, educacionais, sociais, artefatos etc.). Eu exponho este detalhamento sobre a “seleção natural” para pensar o “humanismo digital”[1] em sua “mutação antropológica” que nos leva a repensar o que é o humano[2] na era digital e pandêmica. A relação com a informação digital nos mostra que quem constrói no ambiente digital não é só o humano usuário, mas há logicas técnicas autônomas inteligentes que produzem conosco nossos rastros, que os tratam, que os analisam e que abrem ou fecham caminhos e oportunidades. Esta inteligência artificial precisa ser questionada pelos cientistas para não perder o controle sobre a nossa sobrevivência. Voltando a pandemia neste contexto, ela nos mostra o caráter primordial da informação para resistir e sobreviver. A informação científica certa em oposição à informação fake ou errônea. O historiador Yuval Noah Harari[3] diz em uma entrevista recente com a BBC[4], que a informação é o combustível virtual para tudo o que fazemos nos níveis nacional e local. Esta pandemia exige uma cooperação internacional. Eu adiciono, ela precisa também dos biólogos para ajustar, confirmar e orientar.

Vírus e trabalho colaborativo

O vírus Sars-Cov-2 apareceu brutalmente em nossas sociedades. O vírus colocou a nossa civilização e a nossa existência em perigo. Este vírus é novo, mas o vírus como entidade, existia antes de nossa existência humana. A idade dele talvez volte para a idade da vida na terra.

A palavra “vírus” designa uma partícula microscópica, um agente infeccioso que só pode se espalhar se encontrar um hospedeiro[5]. Alguns vírus infectam humanos, outros infectam animais e outros infectam plantas. Mas nem todos eles causam doenças[6]. Hoje a humanidade está preocupada com a desaceleração da circulação de novo coronavírus e está investindo e se focando na produção da vacina. Mas por que não pensamos na origem deste vírus? De onde vem? Quais são os erros que permitiram a sua transmissão? Didier Sicard, especialista em doenças infecciosas na Franca, fala da indiferença no ponto de partida desta pandemia. “Como se a sociedade estivesse interessada apenas no ponto de chegada: a vacina, os tratamentos, a reanimação. Para que não recomeça deve-se considerar que o ponto de partida é vital”, ele diz. Esta missão precisa um trabalho colaborativo pluridisciplinar e internacional. Isso não é novo para os biólogos, onde colaboração e a coletivismo fazem parte de seus hábitos e atitudes. O trabalho colaborativo é também um atributo da cultura participativa, onde os mais experientes transmitem seus conhecimentos aos novatos. A cultura digital é fundamentalmente colaborativa. Ela se torna participativa quando se refere à construção da memória digital, para permitir o armazenamento de rastros, seus compartilhamentos em qualquer contexto técnico e temporal para fins uteis, e finalmente para combater o esquecimento. É neste sentido que o digital se torna terra de projetos colaborativos, onde os biólogos têm que achar seus lugares. Alguns já fizeram. Tem um projeto que chamou minha atenção, que se chama “Bio Num” ou “Unidade de Ensino de Cultura Biológica Digital”[7] feito pelos estudantes de licenciatura em Ciências Biológicas na Universidade Paris Diderot na França. O objetivo geral é ensinar de maneira diferente na universidade: ensinar, em qualquer nível, é entender mais profundamente o conhecimento transmitido. Em outras palavras, o projeto, que é um website com um blog, é feito para transmitir conhecimento biológico para todos. Os artigos têm conteúdo biológico diversificado que trata temas e problemas da área para o grande público. O trabalho incita os professores e os estudantes a colaborar e escrever e transmitir a biologia diferentemente. A pandemia hoje empurra vocês, biólogos, a inventar seus cotidianos para transformar o nosso, e achar novos caminhos para manter nossa coabitação com a natureza. Quem conhece a natureza e seus fenômenos mais de que vocês?

Por que a biologia e a cultura digital no título de minha palestra? Talvez, eu digo, é para pensar no papel da biologia e dos biólogos na era digital, para produzir, divulgar e arquivar uma informação científica e de referência para todos. Esta missão, esta informação, pode constituir o nosso meio para lutar em tempos de epidemias e de pandemias, mas também pode achar a nossa orientação na era pós-pandemia.

Muito obrigado pela sua atenção.   


[1] Noção proposta pelo historiador das religiões americano Milad Doueihi.

Doueihi M. (2011). Um humanisme numérique. Communication & Langages, vol. 1, n° 167, p. 3-15.

[2] Vitali-Rosati M. (2020). Pourquoi on ne peut plus être humaniste, Culture numérique, https://blog.sens-public.org/marcellovitalirosati/pourquoi-on-ne-peut-plus-etre-humaniste/

[3] BBC Hardtalk (2020). Coronavirus: Yuval Noah Harari, philosopher and historian, on the legacy of Covid-19, https://www.youtube.com/watch?v=gfVrin7Ybp8

[4] British Broadcasting Corporation

[5] Schlegel T. (2020). Didier Sicard : Il est urgent d’enquêter sur l’origine animale de l’épidémie de Covid-19, France Culture, https://www.franceculture.fr/sciences/didier-sicard-il-est-urgent-denqueter-sur-lorigine-animale-de-lepidemie-de-covid-19

[6] Idem.

[7] Bio Num, https://bionum.univ-paris-diderot.fr/

Diante do ditado da pandemia: digital igualitário?

Diante do ditado da pandemia: digital igualitário?
Esta é a versão em português do texto original em francês.
As citações são traduzidas pelo próprio autor. 

Este texto completo, escrito pelo Dr. Hadi Saba Ayon, é uma extensão de sua intervenção na webconferência “A invisibilidade de pessoas com disability no contexto do Covid-19”, organizada pela Rede Internacional sobre o processo de produção de disability (RIPPH), 29 de abril de 2020.

O digital pode nos salvar em tempos de pandemia – e mais tarde na era pós-pandêmica? Como pensar nossas ações individuais e coletivas nesse “lugar de links” (Merzeau, 2013) caracterizado pela rastreabilidade inscrita em uma dimensão computacional? Mais uma vez, encontramo-nos com a tecnologia digital, questionando sua capacidade de encontrar soluções para nossas incertezas. O digital poderia ser um “novo processo civilizador” (Doueihi, 2018) ?

Poderia tornar-se assim diante de um processo de “descivilização” desencadeado pelo SARS-CoV-2? A morte de milhares de pessoas em todo o mundo; testemunhos sobre o abandono de pessoas vulneráveis afetadas pelo COVID-19, conforme relatado por famílias e organizações que defendem e / ou cuidam de pessoas com deficiência (disability) em todo o mundo[1]; triagem de pacientes para admissões de reanimação[2] … tantos índices e histórias nos confrontam com “processos de humilhação” (Smith, 2001) que visam populações vulneráveis e, em particular, pessoas com deficiência.

Cultura digital e animais sociais

Fascinados pela tecnologia e por suas promessas de um futuro melhor para nossas sociedades, estávamos apaixonados por tecnologia digital que Milad Doueihi, historiador de religiões e titular de cátedra do Humanismo digital da Universidade de Paris-Sorbonne (Paris-IV), denomina “um novo processo civilizador”, emprestando o termo ao sociólogo alemão Norbert Elias. O que Elias chama de “o Processo Civilizador” é de fato uma correspondência entre o processo histórico de tomada do poder por um estado centralizado e o autocontrole exercido pelos indivíduos sobre sua violência espontânea, instintos e afetos. Elias descreveu os seres humanos (das sociedades europeias) do século XX como “bárbaros modernos” (late barbarians). Os últimos foram descritos por Doueihi como sendo “selvagens modernos” sujeitos a um “humanismo digital”:

“O resultado de uma convergência entre nosso complexo patrimônio cultural e uma técnica que se tornou um local de sociabilidade inédita”.

De acordo com Doueihi (2011), o digital:

“É uma cultura, no sentido de que estabelece um novo contexto, em escala global, e porque o digital, apesar de um forte componente técnico que sempre deve ser questionado e constantemente monitorado (porque é o agente de uma vontade econômica), tornou-se uma civilização que se distingue pela maneira como muda nossa visão de objetos, relacionamentos e valores, e que é caracterizada pelas novas perspectivas que introduz no campo da atividade humana”.

Brutalmente, o SARS-CoV-2 invade nosso mundo e nos envia de volta à nossa animalidade fundamental. Stéphane Audoin-Rouzeau, historiador da Primeira Guerra Mundial, escreve:

“Continuamos sendo homo sapiens pertencentes ao mundo animal, atacáveis por doenças contra as quais os meios de luta permanecem rústicos em vista de nosso suposto poder tecnológico”.

Estamos enfrentando um processo de “descivilização” provocado pelo SARS-CoV-2? O que provavelmente causará tal agitação? Podemos encontrar respostas “do lado de diminuir a calculabilidade dos riscos sociais, aumentar os perigos, aumentar as incertezas, que podem ocorrer em tempos de crise social”, epidemia ou pandemia? Difícil de responder ainda.

Sobrecarregada por sua diferença física ou funcional ou comportamental ao longo de sua vida, a pessoa com deficiência está no mundo digital, em um período de pandemia, em pé de igualdade com os usuários da Internet? O corpo está no centro da interação social: vivemos e nós construímos através do corpo. Mas, atualmente, essa interação social (corporal) – é severamente limitada – exige o Covid-19. Esse corpo se torna suspeito no espaço público e até privado. Ele é controlado, julgado. Ele é muitas vezes excluído, abandonado, às vezes até expulso. Sars-Cov-2, como a AIDS, rompe o relacionamento com os outros, borra as regras que constroem a confiança e reforça a restrição em relação ao agente contaminador. Para a antropóloga Françoise Héritier, as soluções encontradas pela humanidade em relação a problemas como a AIDS vieram mais de constrangimentos do que da necessidade de convencer.

Isso pode parecer desesperado, porque as restrições básicas estão mais do lado da intolerância do que da tolerância, mas a experiência que temos da doença contagiosa incurável ou da epidemia mortal mostra que as diferentes sociedades se protegem às vezes pela fuga, mas geralmente pelo afastamento, o abandono, a expulsão ou matando o contaminante.

O corpo da pessoa com deficiência, um ponto de estigma social, torna-se repentinamente igual a outros corpos. O que importa (assustar) é a presença de qualquer corpo, a uma distância suficientemente afastada para ser percebida como segura (pelo menos um metro). É assim que todos os corpos se tornam iguais em relação ao medo, doença e morte.    

Perante essa crise universal terrificante que agita nossas vidas e interrompe nossos hábitos, a humanidade encontra na tecnologia digital um caminho pela continuidade da organização e o funcionamento de suas sociedades. Informar-se, comunicar-se, trabalhar online, estudar, fazer compras, gerenciar assuntos administrativos: mais do que nunca, o digital está se mostrando como um ambiente no qual o processo social está inscrito. Diante do constrangimento do distanciamento físico, os indivíduos se veem forçados em suas interações a abandonar ou reduzir seus relacionamentos face-a-face para não correr o risco de se infectar ou infectar outras pessoas. O corpo se torna suspeito. Com sua retirada do espaço público, ele rasga da interação social seu “simbolismo” no sentido meadiano (de George Herbert Mead), na medida em que a interação simbólica inicia um processo de interpretação e definição pelo qual alguns estabelecem os significados das ações de outros e redefinem suas ações. Aninhada em ambientes digitais, toda interação produz rastros. Principalmente involuntários, esses rastros escapam à enunciação e produzem informações sobre nosso comportamento.

Segundo Louise Merzeau (2013), esses rastros resistem às interpretações da semiologia porque se destacam de outra lógica. Tudo neles é o produto do processamento: “processamento de instruções por computador, processamento algorítmico de dados, processamento econômico e estratégico de bancos de dados de intenção”. Hoje, as empresas digitais tendem a impor a lógica de marketing através do modelo de Personal branding, criação de perfilhamento e e-reputação. “Opor-se a essa aceitação publicitária uma função de publicação de rastros representa um importante desafio político e cultural” (Merzeau, 2013).

Lembremos que a Internet é uma oportunidade para a democracia, graças às fundações igualitárias que presidiram seu nascimento e desenvolvimento (Cardon, 2010). No entanto, ainda tem comunidades de usuários que encontram dificuldades no acesso; na acessibilidade e na reapropriação de rastros. Como as pessoas com deficiência poderiam, portanto, organizar seu hábitat digital, garantindo uma plena participação social?

Equipamento, acesso e acessibilidade

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006) reconhece os direitos dessas pessoas de ter “acessibilidade aos meios físico, social, econômico e cultural, à saúde, à educação e à informação e comunicação, para possibilitar às pessoas com deficiência o pleno gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais”. O acesso é, portanto, uma condição essencial para o exercício dos direitos humanos.

Colocando a noção de acesso no domínio conceitual do meio ambiente para medir seu impacto na participação social, Patrick Fougeyrollas e seus colegas (2015) apresentaram o acesso como a interseção entre seis dimensões e componentes de ambiente. As dimensões são as seguintes: disponibilidade; acessibilidade; aceitabilidade; abordabilidade; usabilidade e adaptabilidade. Desta forma, o problema não se reduz ao acesso à ferramenta de TI, ao provedor de rede e ao acesso com ou sem fio. Estamos enfrentando uma fase que exige uma literacia digital, aprendizado e saber-fazer, imperativos para o uso da tecnologia e a administração de conteúdo.

Muitos estudos mostram obstáculos ao acesso ou acesso limitado à tecnologia digital por diversas populações, incluindo pessoas com deficiência. Cito um estudo recente intitulado:

“Perspectivas de adultos jovens sobre a recepção de serviços de telepsiquiatria em um programa urbano de intervenção precoce para psicose no primeiro episódio: um estudo transversal e descritivo” (Perspectives of Young Adults on Receiving Telepsychiatry Services in an Urban Early Intervention Program for First-Episode Psychosis: A Cross-Sectional, Descriptive Survey Study) publicado em março de 2020 por um grupo de pesquisadores canadenses (Montreal). O estudo mostra a existência de conhecimento limitado em telepsiquiatria em serviços especializados para o Primeiro Episódio Psicótico, “apesar de seu potencial para melhorar o acesso a serviços e engajamento”. Ele mostra que mais da metade dos participantes (59%) “raramente ou nunca usavam o chat por vídeo tradicional (por exemplo, o Facetime)”. O estudo relata que “apesar dos obstáculos encontrados em comparecer às consultas e expressar sua receptividade à telepsiquiatria, os participantes não tiveram acesso a esses serviços”.

Na era em que a tecnologia digital afeta fatores pessoais e ambientais e os hábitos de vida de todos, a plena participação social de pessoas com deficiência e de todos deve questionar o uso e não apenas o acesso. O que podemos fazer com (e no) digital para que nossa presença não se limite a uma ou diversas identidades exploradas pelos perseguidores de rastros (governos, empresas, indivíduos e outros)? Estamos diante de um ecossistema sociotécnico no qual o usuário é o centro e o cérebro, daí a importância, para a pessoa com deficiência e para qualquer outra pessoa, de pensar em métodos e maneiras para desenvolver laços sociais, autoestima, controle da vida e do tempo, qualidade de vida e construir comunidades online. Como pensar os rastros digitais em uma lógica que não se refere mais a uma identidade, mas à uma capacidade de gerenciar a comunicação?

O conceito da “fratura digital” sugere que o problema da inclusão digital seria resolvido assim que as medidas fossem bem-sucedidas em “incluir” os grupos excluídos. A web foi projetada para funcionar para todos, independentemente de seu hardware, software, idioma, local ou habilidade. Nesse caso, a web deve estar acessível a pessoas com várias habilidades auditivas, motoras, visuais e cognitivas.

De acordo com o World Wide Web Consortium (W3C), a acessibilidade na Web significa que sites, ferramentas e tecnologias são concebidos e desenvolvidos para que pessoas com deficiência possam usá-los.

Mais pormenorizadamente, as pessoas podem: perceber, entender, navegar e interagir com a web e contribuir. O acesso aos terminais e à Internet, bem como a adaptação de posto de trabalho de acordo com a deficiência, não são suficientes para a participação social na rede. O digital não é apenas uma questão técnica e econômica, mas contribui para a construção de um projeto de sociedade.

Deixando de lado sua diferença corporal ou funcional ou comportamental, a pessoa com deficiência pode se envolver em projetos de produção colaborativos para satisfazer suas necessidades (individuais e coletivas). De acordo com Serge Proux (2014) essa “forma de contribuição” (colaborativa) nos remete a um universo de modestas e horizontais relações, de troca entre colegas em que colaboradores estão envolvidos em:

“Um universo de expectativas normativas compartilhadas conjuntamente. Existem valores compartilhados entre colaboradores, como liberdade de expressão, a lógica da doação, a necessidade de cooperação”.

Construir memórias conjuntamente

Como funcionar ativamente na sociedade do conhecimento? Como fazer emergir um novo “viver juntos”? A pandemia atual nos lembra que estamos afogados em informação. Essa última está em qualquer lugar, confiável e falsa, arquivada e mal documentada, multimídia. Se seu acesso é fácil, seu uso e sua transformação em conhecimento não são óbvios. O digital transtornou o conceito de recepção.

O esquema de emissor-receptor (conhecido em Ciência da Informação) não se aplica mais à informação em rede, pelo menos no usuário da Internet. Este último é mais do que um receptor de informações (como foi o caso dos meios de comunicação de massa), ele produz, procura, compartilha, cria redes, participa de conversas e constrói comunidades. Nesse período de pandemia, duas lógicas em usos digitais, entre outras, nos interessam: a primeira é passiva, recebe/consome informação, a curte e a compartilha (principalmente em redes sociais e aplicativos de bate-papo). etc.). A segunda, enquanto isso, produz/elabora coletivamente a informação, a armazena e a compartilha (em páginas da web, plataformas de escrita colaborativa, blogs etc.).

A transição do recebimento de informações para a produção e o compartilhamento exige pensar o digital não apenas como um meio e / ou uma mídia, mas também como um ambiente para morar e melhorar. Isso implica desenvolver habilidades digitais, mas sobretudo uma visão de apropriação de rastros digitais em ambientes “inteligentes”, que podem ser usados para nos constituir, encontrar e entender informações e analisar situações ou processos. Em nosso novo mundo (pandemia e pós-pandemia), a troca de informações em torno de um tema ou questão torna-se escrever e memorizar. É assim que as pessoas com deficiência, assim como todas as outras pessoas, apropriam seus rastros digitais em estruturas arquitetônicas que permitem a leituras-escritas ligadas ao momento, mas também extraídas de outras temporalidades.

Construir ou cooperar na elaboração de um ambiente digital “inteligente” significa desenvolver uma memória digital, que pode aumentar o poder individual, coletivo e, acima de tudo, a ação no ambiente para transformá-lo quando necessário.

Fim.


[1] Ver o artigo de Jérôme Val no jornal France Inter « Coronavirus : a-t-on oublié les foyers de handicapés ? », publicado no dia 15 de abril de 2020, https://www.franceinter.fr/coronavirus-a-t-on-oublie-les-foyers-d-handicapes.

Ver « L’alerte de 48 associations sur le sort des personnes handicapées, ‘oubliées de la pandémie’ de coronavirus », publicado no dia 04 de abril de 2020, https://www.lejdd.fr/Societe/lalerte-de-48-associations-sur-le-sort-des-personnes-handicapees-oubliees-de-la-pandemie-de-coronavirus-3959794

Ver o artigo de Emely Lefrançois no jornal La presse « Personnes en situation de handicap : les milieux de vie dont on ne parle pas », publicado no dia 20 de abril de 2020, https://www.lapresse.ca/debats/opinions/202004/19/01-5270046-personnes-en-situation-de-handicap-les-milieux-de-vie-dont-on-ne-parle-pas.php

Ver o artigo de Autistics for Autistics Ontario intitulado “Intellectually disabled Canadians are dying in residential institutions: What’s happening & what can be done”, publicado no dia 17 de abril de 2020, https://a4aontario.com/2020/04/17/intellectually-disabled-canadians-are-dying-in-residential-institutions-whats-happening-what-can-be-done/

[2] Ver o artigo de Vincent Olivier no jornal L’Express « Covid 19 : va-t-on « sacrifier » des malades en réanimation ? », publicado no dia 12 de março de 2020, https://blogs.lexpress.fr/le-boulot-recto-verso/2020/03/12/covid-19-va-t-on-sacrifier-des-malades-en-reanimation/

Ver o artigo de Eric Jozsef no jornal Libération « Covid-19 : la sélection des malades divise le corps médical italien », publicado no dia 19 de março de 2020, https://www.liberation.fr/planete/2020/03/19/la-selection-des-malades-divise-le-corps-medical-italien_1782400


Referências

 – Cardon D. (2010). La Démocratie Internet, Promesses et limites, Seuil, Paris.

– Confavreux J. (2020). Stéphane Audoin-Rouzeau: «Nous ne reverrons jamais le monde que nous avons quitté il y a un mois», Mediapart, https://www.mediapart.fr/journal/culture-idees/120420/stephane-audoin-rouzeau-nous-ne-reverrons-jamais-le-monde-que-nous-avons-quitte-il-y-un-mois

– Doueihi M. (2018). Le numérique, un nouveau processus civilisateur, Le Monde, 24 janvier 2018, https://www.lemonde.fr/idees/article/2018/01/24/le-numerique-un-nouveau-processus-civilisateur_5246335_3232.html

– Doueihi M. (2011). Pour un humanisme numérique, Seuil, Paris.

– Fougeyrollas P., Boucher N., Fiset D., Grenier Y., Noreau L., Philibert M., Gascon H., Morales E., Charrier F. (2015). Handicap, environnement, participation sociale et droits humains : du concept d’accès à sa mesure. Revue Développement humain et changement social, avril 2015, p. 5-28.

– Lal Sh., Abdel-Baki A., Sujanani S., Bourbeau F., Sahed I., Whitehead J. (2020). Perspectives of Young Adults on Receiving Telepsychiatry Services in an Urban Early Intervention Program for First-Episode Psychosis: A Cross-Sectional, Descriptive Survey Study. Frontiers Psychiatry, 11:117, doi: 10.3389/fpsyt.2020.00117

– Lepalec A., Luxereau A., Marzouk Y. (1997). Entretien avec Françoise Héritier. Journal des anthropologues, n° 68-69, p. 21-33.

– Merzeau L. (2013). L’intelligence des traces. Intellectica, vol. 1, n° 59, p. 115-135.

– Paillé S. (2017). La sociologie de Norbert Elias et « l’effondrement de la civilisation » en Allemagne. Cycles Sociologiques, vol. 1, n° 1, https://cycles-sociologiques.com/publications__trashed/sabrina-paille-la-sociologie-de-norbert-elias-et-leffondrement-de-la-civilisation-en-allemagne/

– Proulx S. (2014). Enjeux et paradoxes d’une économie de la contribution, dans La contribution en ligne : pratiques participatives à l’ère du capitalisme informationnel, Presse de l’Université du Québec, Québec.

– Smith D. (2001). Organizations and Humiliation: Looking beyond Elias. Organization, vol. 8, n° 3, p. 537-560.