Das práticas do Samba aos esquemas do webinar: participação como compartilhamento, governança e memória

Essa palestra foi apresentada no Congresso Internacional de Tecnologias e Gestão do Conhecimento do Território de Irecê organizado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA-Irecê) e Universidade do Estado da Bahia (UNEB-Irecê). CITGC 2021 31 de Maio 02 de Junho | Irecê-BA, Brasil

Introdução

Bom dia a todos,

É um prazer estar aqui com vocês. Quero agradecer o esforço de cada uma e de cada um para organizar este congresso, bem como a nossa mesa que recebe uma presença valiosa do Sudeste Asiático, para discutir temas sobre a tecnologia digital, a cultura, a educação e os desafios sociais.

Hoje trago comigo, na minha apresentação, muitas dúvidas e algumas descrições e comparações. Procuro pensar os processos de participação, de compartilhamento, da governança e da memória. Quero falar de um lado, sobre o Samba, como modelo cultural e artístico de participação entre artistas, músicos e “fandom” (fãs); e do outro lado do webinar, como modelo acadêmico e social de participação entre organização, especialistas ou profissionais e membros. Como a pandemia de Covid-19 forçou as pessoas a minimizarem sua comunicação face a face e substituí-la pela comunicação digital, o webinar, como uma conferência ou reunião on-line, assume um grande lugar e suas práticas são desenvolvidas no domínio acadêmico, bem como em muitos setores profissionais. Neste contexto, o Carnaval teve de ser cancelado este ano no Brasil, e sua celebração foi substituída por diferentes práticas e eventos artísticos e culturais digitais. Existe alguma conexão ou semelhança entre o samba e o webinar? Caso afirmativo, o que isso nos ensina?

Por que falamos do Samba em um congresso especializado em tecnologias e gestão do conhecimento? É porque gostamos do samba? É porque é tempo de pandemia e sentimos falta de eventos do samba? Essas podem ser explicações pessoais dos motivos. A motivação científica da nossa escolha é que entendemos o Samba como uma cultura participativa e suas práticas como um modelo de participação muito interessante para descrever e estudar. Por isso perguntamos: qual é a relação entre o samba e a cultura digital? Mais especificamente, qual é a ligação entre a escola de samba e a memória digital? Podemos comparar a escola de samba a um curso online, um webinar ou um exercício colaborativo? Podemos usar essa comparação para definir a noção de participação e ver como isso ajuda na gestão do conhecimento?

Escola de samba

Em um artigo intitulado “Alguns critérios poéticos e sociais para o design educacional”, o cientista da computação e educador sul-africano e americano Seymour Papert escreveu em 1975, que o aprendizado sobre e por meio da tecnologia pode ocorrer em ambientes automotivados e apoiados pela comunidade, como a escola de samba do Brasil. Ele escreve:

Se você aparecesse em uma escola de samba em uma típica noite de sábado, você iria levá-la para um salão de dança. A atividade dominante é a dança, com o acompanhamento esperado de beber, conversar e observar a cena. (…). Você logo começaria a perceber que há mais continuidade, coesão social (…). A questão é que a Escola de Samba tem outro propósito além da diversão daquela noite em particular. Este propósito está relacionado com o famoso Carnaval que dominará o Rio e em que cada Escola de Samba assumirá um segmento da longa procissão de dança de rua com mais de vinte e quatro horas de duração. Este segmento será uma apresentação elaboradamente preparada, decorada e coreografada de uma história, tipicamente um conto folclórico reescrito com letras, música e dança compostas recentemente durante o ano anterior. Portanto, vemos as funções complexas da Escola de Samba. Enquanto as pessoas vêm para dançar, elas participam simultaneamente da escolha e da elaboração do tema do próximo carnaval; as letras cantadas entre as danças são propostas de inclusão; a dança é também a audição, ao mesmo tempo competitiva e de suporte, para os papéis principais, o ensaio e a escola de treinamento para dançarinos em todos os níveis de habilidade (a tradução em portugues é nossa).

Em seu livro, co-escrito com Mizuki Ito e danah boyd, e intitulado Participatory Culture in a Networked Era: A Conversation on Youth, Learning, Commerce, and Politics (2015), Henry Jenkins fala sobre o samba no Rio de Janeiro enquanto aborda a noção de cultura participativa. Ele escreve:

Quando fui ao Rio, há alguns anos, visitei uma das escolas de samba e saí com uma noção clara do que Papert estava falando. Em qualquer momento, existem muitos modos diferentes de engajamento: alguns assistindo e observando, esperando para participar, enquanto outros estão na pista de dança e outros são muito mais periféricos, assistindo da varanda e mandando mensagens para seus amigos. Existem locutores em um sistema de som solicitando ativamente a participação, persuadindo os membros tímidos da comunidade a irem para a pista de dança. A certa altura, um grupo de pessoas com o que parecia ser uniforme de polícia ou militar avançou pelo espaço, agarrando pessoas que suspeitavam não contribuírem para o esforço coletivo. Ansioso para não ser “detido”, perguntei ao meu hospedeiro o que fazer, e ele sugeriu colocar uma camiseta festiva que recebemos na porta. Ele percebeu que, mesmo se eu não pudesse dançar, eu poderia pelo menos ser decorativo. Este foi um grande lembrete das muitas maneiras diferentes de os participantes podem contribuir e da necessidade às vezes de convidar, encorajar e, neste caso, até obrigar a participação em vez de tomá-la como certa (a tradução em portugues é nossa).

Webinar

Agora vamos falar sobre webinar ou web conferência. O termo “webinar” é uma combinação da palavra web e da palavra seminário/seminar, significando uma apresentação, palestra ou workshop que é transmitido pela web. De acordo com o dicionário Merriam-Webster, é “uma apresentação educacional online ao vivo durante a qual os telespectadores participantes podem enviar perguntas e comentários”. Na Wikipedia, lemos que o uso inicial se referia puramente à transmissão e ao consumo de streaming de áudio e vídeo pela World Wide Web. Agora é provável que os webcasts permitam a resposta do público às pesquisas, comunicação de texto com apresentadores ou outros membros do público e outras comunicações bidirecionais que complementam o consumo do conteúdo de áudio / vídeo transmitido.

Para ter um webinar, primeiro precisamos de conexão à Internet e algumas tecnologias que incluem software e funcionalidades. Em segundo lugar, precisamos de um hospedeiro: uma organização ou um indivíduo para fornecer acesso, regras, cadastro, gravação e gerenciamento.

Um webinar, como o que temos hoje, precisa ser preparado: técnicas, gerenciamento de tempo, palestrantes, público, marketing e um conjunto de regras para funcionar. Os participantes precisam de contas (ou e-mails) para se cadastrar e se conectar por meio de um link, para respeitar as regras para que possam interagir (com os palestrantes ou entre eles).

Um webinar tem um objetivo. Primeiro, ele substitui a interação face a face por qualquer motivo (por causa da pandemia nos dias de hoje). Em seguida, tem como objetivo apresentar palestras sobre um ou diferentes tópicos e discuti-las. As interações entre os participantes variam. Podem limitar-se a escrever mensagens (questões e comentários) na sala de bate-papo, ou a realizar intervenções orais ou audiovisuais. Os graus de envolvimento de cada um variam em função das suas ações, dos rastros digitais que produz ou deixa no ambiente digital que constitui o webinar, mas também fora deste ambiente (falar ou escrever sobre o webinar em outras plataformas). O webinar tem uma duração: começa e termina em horários específicos. Podemos registrar e especificar os termos de seu acesso, para que possamos verificar seu conteúdo a qualquer momento e de qualquer lugar.

De um sistema de símbolos a um sistema de rastros

As escolas de samba são umas das instituições culturais mais famosas do Brasil. Estão presentes dentro das comunidades, principalmente as afro-americanas. O samba é resultante de estruturas musicais europeias e africanas, mas foi com os símbolos da cultura negra brasileira que ele se alastrou pelo território nacional, tornando-se uma das principais manifestações culturais populares.

O samba é uma manifestação cultural. É mais de que um ritmo, uma dança. É um evento popular. Uma cultura. Transmite valores, história e narrativas de memória. Segundo Vinícius Ferreira Natal (2014)1, as expressões carnavalescas possuem papel importante na constituição do espaço urbano e cultural. Não é o caso do webinar, onde humanos e fatores técnicos e comunicativos coabitam e se trocam para produzir dinâmica, conteúdo, conhecimento e realidade? Os participantes do webinar e suas práticas não elaboram somente o ambiente digital e participam da editorialização do conteúdo, mas também da própria realidade.

O samba, como cultura, deve ser estudado em sua complexidade. Não podemos analisar agora todos esses fatores, mas vamos nos concentrar em um: a comunicação. Seguindo Edward T. Hall, as atividades de vida são interações dinâmicas do organismo com seus ambientes. Essa interação é influenciada pela presença de outros organismos do mesmo tipo, suas características variam, conforme Gregory Bateson, que fala sobre a análise interacional do comportamento humano. Ele cria o conceito de cismogênese, distinguindo entre dois tipos de processos de diferenciação (cismogênese): o primeiro é simétrico e o segundo é complementar. Em relações simétricas, os parceiros se envolvem em uma espiral de magnitude crescente do mesmo comportamento, enquanto em relacionamentos complementares os parceiros juntos formam uma entidade bipolar.

Esses dois níveis de relações podem ser vistos na escola de samba. Por exemplo, entre o Mestre da bateria e seus percussionistas (relação complementar). É o mesmo no webinar? Nós pensamos que sim. Esses dois níveis de relações podem ser vistos na comunicação entre os organizadores e os membros de um webinar, bem como entre o último e os palestrantes principais. Também pode descrever o feedback que os membros podem produzir após o webinar, dando comentários, notas de avaliação ou até mesmo escrevendo sobre o evento em vários ambientes digitais.

Entendemos a cultura do samba como um sistema de símbolos vivenciado e tratado pelos sujeitos sociais. Mostra práticas e valores comuns compartilhados entre os membros da comunidade. Eles podem ser descritos como sinais. Os movimentos e comportamentos nos ambientes de samba podem ser definidos como símbolos seguindo Erving Goffman (1973) ou “signos-rastros” seguindo Béatrice Galinon-Mélénec (2011).

De acordo com Galinon-Mélénec (2020)2:

Tudo é um signo (o corpo e todo o material fora do corpo, ou seja, os humanos e seus ambientes humano e não humano), e todos os signos são o resultado de interações. Nessa interpretação, ao conectar um signo àquilo que o produziu, o signo torna-se um “signo-rastro”. Essa associação conecta rastros do passado às suas interpretações presentes. Nesse sentido, todo signo é signo-rastro do processo que o construiu. Os signos-rastros não são apenas numerosos, mas em movimento perpétuo (a tradução em portugues é nossa).

Os símbolos comportamentais podem se tornar signos-símbolos e promover o sentimento de pertencimento a uma comunidade, que compartilha os mesmos valores, como é o caso do samba.

Já no ambiente digital, as pegadas são diferentes dos signos porque fogem para a significação. A pegada digital não tem um significado em si. Pode ser destacada do corpo / sujeito de que emana, pode ser indexada, combinada com outras e calculada. Quando a pegada é detectada e interpretada, ela se torna um rastro. A rastreabilidade digital é produzida automaticamente durante um cálculo, codificação ou conexão, na maioria das vezes sem o conhecimento do emissor e do receptor.

A cultura é antes de tudo compartilhar

De acordo com Milad Doueihi, o digital torna-se cultura pela transição ou ultrapassagem do tecnicismo para usos culturais traçados na tecnologia digital, ou da computação e processamento de dados ao “digital”. O que ele chamou de “le numérique” (em francês) digital expressa a mudança no status da ciência da computação. Ela passou de um ramo da matemática a uma ciência autônoma para se tornar uma indústria e, recentemente, uma cultura. Essa nova cultura modificou a construção da sociabilidade e dos espaços que habitamos. O digital nos revela uma coisa considerável: cultura é antes de tudo compartilhar. Sem compartilhar, não pode haver cultura. Compartilhar é ter em comum, dividir e distribuir, postar, contar, participar. Portanto, a participação está no cerne da cultura digital; até podemos dizer que esta cultura não pode existir sem a participação.

Memória coletiva e reinvestida

Essa dinâmica entre conexão e compartilhamento, participação e conhecimento designa o mecanismo do processo de memória. Memorizar é reorganizar o conteúdo. Por muito tempo, a memória foi reduzida a uma capacidade psíquica de registrar a experiência do sujeito, sendo negada qualquer dimensão coletiva. Na era digital, não podemos fugir de sua dimensão técnica, especialmente porque as questões políticas e jurídicas surgiram com a digitalização do conteúdo e o aumento do volume de inscrições digitais. A apreensão desses problemas exige uma reflexão menos instrumental do que ambiental (sistêmica).

Em seu livro Rogue Archives: Digital Cultural Memory and Media Fandom (2016), Abigail De Kosnik examina a prática de arquivamento na transição da mídia impressa para a digital. Ela escreve que os “Estudos da Memória” remontam pelo menos ao Fedro, escrito por Platão no século 4; mas o campo em sua forma contemporânea foi iniciado por Maurice Halbwachs em seu livro Les Cadres Sociaux de la Mémoire (1952) [Os quadros sociais da memória], no qual Halbwachs articulou sua teoria da memória coletiva. Segundo ele, a memória é menos produto de uma apreensão do que de uma construção, onde a montagem dos fragmentos exige a retransmissão dos quadros sociais da linguagem, do espaço e do tempo. Halbwachs argumenta que, à medida que os indivíduos formam suas memórias na sociedade, é também na sociedade que eles se lembram, reconhecem e localizam suas memórias. Ele sugeriu que toda memória individual foi construída dentro de estruturas e instituições sociais. Ele afirmou que a memória privada individual é compreendida apenas por meio de um contexto de grupo.

E a memória no contexto do samba? Algumas escolas de samba possuem departamentos culturais que tem como objetivo de registrar memórias, experiências e testemunhas individuais de pessoas que tem trajetórias ligadas à escola de samba. Outros possuem arquivos em papel e/ou digitais e produzem conteúdo nos websites e nos canais de mídia social para falar sobre suas histórias, atividades e comunicar com o público.

A memória é importante para o samba. Um dos objetivos da construção da memória sobre o samba é salvaguardar seu conteúdo como uma nova cultura imaterial e promover sua difusão. O samba é um patrimônio nacional brasileiro e deve ser preservado institucionalmente. Salvar a memória é também não esquecer e educar indivíduos e grupos sobre cultura, identidade, tradição, história e presente.

Em seus trabalhos sobre memória, Louise Merzeau contrapõe a “memória reinvestida” – por indivíduos, grupos sociais e comunidades – a uma “memória metálica” descrita por Eni Orlandi (2010) como a memória da máquina.

Merzeau convoca os usuários digitais a construir uma “presença digital” (présence numérique), apropriando-se de seus rastros. Mas como reinvestir a memoria e construir a presenca digital?

Por exemplo fazer um webinar e ao mesmo tempo produzir conteúdo usando um editor de texto colaborativo online como Framapad, ou escrevendo no Twitter, ou editar e organizar ideias de forma colaborativa na forma de notas como Framemo; permite aos usuários de comunicar, não apenas sobre o tema do webinar e a apresentações dos palestrantes, mas também sobre suas próprias experiências, sobre a história do evento, seu modelo organizacional, os comportamentos e ações dos participantes, sua gestão, seus métodos de comunicação e arquivamento, etc. Essas formas mostram que o espaço público é um espaço de memória e que essa memória é de todos. A governança vem da criação de uma comunidade que vai administrar o recurso e garantir seu compartilhamento.

Transliteracia, re-documentarização e patrimonialização

Dessa forma, os usuários participam na elaboração de uma memória heurística, que lhes dá os métodos para reinventar seu uso. Esta abordagem de reapropriação pode ser resumida em três níveis:

• O primeiro está ligado às competências digitais dos indivíduos ou, mais especificamente, à transliteracia (para habitar o ambiente digital: habilidades para gerir equipamentos e interfaces; produzir e modificar conteúdo; entender a informação e analisar uma situação ou um processo; ter um pensamento crítico).

• O segundo é a re-documentarização (Salaün, 2007). Trata-se de trazer todos os metadados essenciais para a reconstrução dos conjuntos do documento e toda a rastreabilidade do seu ciclo. Nessa reconfiguração geral do acesso, os dados visuais desempenham um papel particular. As próprias imagens não são apenas documentos a serem reprocessados, mas também servem de modelo para o desenvolvimento de novos dispositivos de navegação e indexação de conteúdo. Essa reapropriação de rastros permite a extração de peças e seu registro em novas séries, possibilitando enquadrá-las em uma diversidade de comunidades, em memórias construídas como comuns.

• O terceiro está relacionado a uma patrimonialização explícita, na forma de um arquivo institucional de rastros digitais.

Conclusão

Então, o que aprendemos com a comparação entre as práticas de samba e o webinar em relação à participação?

– O webinar, assim como a sessão de samba, precisa ter objetivo e continuidade para não passar e ser esquecido. Enquanto os integrantes da escola de samba participam, por meio de sua dança, da escolha e da elaboração do tema do próximo carnaval, os integrantes do webinar participam por meio de suas interações (comentários, intervenções, questionamentos, desconexões) na produção do conteúdo e em seu sucesso ou sua falha.

– A escola de samba, bem como o webinar, precisa de membros registrados. Mas os membros não constituem um elemento suficiente para ter participação. Participar não significa apenas ser ativo, é também fazer parte de uma prática, uma cultura e um espaço compartilhados e contribuir na produção de conteúdos valorizados pela comunidade.

– O samba como modelo de participação mostra práticas sociais e culturais, estratégias de comunicação e a importância da construção da memória. A cultura do webinar, para constituir uma estrutura participativa, precisa fazer parte da transliteracia, superar a interação para o envolvimento e o engajamento na escrita, no compartilhamento e na memorização. Os rastros que constituem ou estão vinculados ao webinar, devem ser organizados em projetos de memória (particular, institucional ou coletivo).

– O webinar não pode ser entendido apenas como mais uma ferramenta on-line, mas como um lugar para habitar, favorecendo a participação, a inclusão, a governança e a elaboração da memória. Focando em o que podemos fazer e não apenas no que Eu posso fazer, e possibilitando a construção de comunidades e não apenas as identidades e reputações digitais; a participação pode transitar da capacidade de ler e escrever no digital para a de saber como programar nossa rastreabilidade.

Agradeco sua atenção .

1 Natal V.F. (2014). Cultura e Memória na Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro. Dissertação de mestrado em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

2Galinon-Mélénec B. (2020). The “signe-traces paradigm”. Fragments. Translation by Laura Kraftowitz, from “Fragments théoriques du signe-trace, propos sur le corps communicant”, in L’Homme trace, Perspectives anthropologiques des traces contemporaines, Paris, CNRS éditions, série L’Homme-trace, tome 1, 2011, p. 191-213.

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De rastro à memória de água à memória digital

Esse texto foi apresentado na conferência BIOLOGIA, EDUCAÇÃO, INDÚSTRIA 4.0 E SOCIEDADE organizada pelo Curso da Biologia na UNINORTE-ACRE (Brasil) no dia 28 de Outubro de 2020.

Prezados Professoras e professores do Curso de Ciências biológicas do Centro Universitário UNINORTE em Rio Branco-Acre,

Colegas acadêmicos, amigas e amigos Acrianos, concidadãos,

Boa noite,

Agradeço a UNINORTE, e a amiga estimada Professora Solange Chalub pelo convite e pela boa iniciativa de pensar a biologia em relação com a tecnologia em um mundo caracterizado pelas grandes transformações e mutações biológicas (com a COVID-19) e societais (no senso amplo, quanto aos efeitos da pandemia sobre o indivíduo e a sociedade).

Estou muito feliz em estar com vocês neste evento e desejo para vocês todos uma boa saúde e muito sucesso nos seus projetos apesar das complicações e das dificuldades.

Rastro

Hoje eu trago para este evento, que compartilho com biólogos interessados em abordagens multidisciplinares, a noção de rastro para pensar a memória e sua importância na era digital, pandêmica e pós-pandemia.

O debate, a que me refiro, sobre o rastro e a rastreabilidade digital, vem da França. A “Escola francesa sobre o rastro” ou a “Nova Escola Francesa do pensamento do rastro”, como alguns chamam, é um grupo de professores e pesquisadores que questionam a noção de rastro e seu uso nas disciplinas desde os últimos 10-11 anos. A noção de rastro não tem um significado único nem um uso só. Os trabalhos reúnem vários entendimentos, interpretações e perspectivas que se referem às áreas científicas e pontos de vistas diversificados. Questionar o que significa o rastro, nos ajuda para entender problemáticas contemporâneas como a pandemia de Covid-19 e a cultura digital, mas traz também argumentos filosóficos sobre a existência, a origem do universo e a evolução do ser humano.

Na ciência, os rastros nos mostram a história da evolução:

As primeiras partículas, os átomos, moléculas, estrelas, células, organismos, seres vivos, até os animais curiosos que somos (…) todos se sucedem na mesma cadeia, são todos carregados pelo mesmo movimento (…) os elementos que compõem nossos corpos são aqueles que formaram o universo (Reeves H., de Rosnay J., Coppens Y., Simonnet D., 1995)1.

Como diz Jacques Derrida:

Cada rastro é um rastro de um rastro. Nenhum elemento nunca está presente em qualquer lugar (nem simplesmente ausente), há apenas rastros.

Béatrice Galinon-Mélénec2, Professora Emérita em Estudos da Comunicação na Université Le Havre Normandie na França e fundadora do Human Trace UNITWIN Complex Systems Digital Campus UNESCO, um laboratório digital que dirige várias publicações sobre o “rastro”, define o rastro como uma parte do real que um indivíduo interpreta como consequência. Nesta perspectiva, ela propõe colocar os termos “pegada”, “índice” e “marca” em subgrupos dentro da categoria “rastro”. Ela apresenta o paradigma de “Homem-Rastro” (Homme-Trace) postula que:

O ser humano é ao mesmo tempo, produtor de rastros e construto de rastros, operando em ciclo, um sistema em que cada um constrói o outro em um continuum (Galinon-Mélénec, 2011).

Uma outra maneira de ver o rastro é proposta por Alain Mille, Professor Emérito na informática e Inteligência Artificial na Universidade Claude Bernard em Lyon.

De acordo com ele:

Um rastro é constituído a partir de pegadas deixadas voluntariamente ou não no ambiente durante um processo. O rastro assim construído é escrito (ou não) no ambiente usado como suporte de memória (como um processo)3.

Segundo ele, a natureza das pegadas é variável e qualquer processo pode ou não produzir pegadas mais ou menos persistentes, inscrevendo-se no ambiente e então distinguíveis por observadores informados como um rastro do processo inicial. A observação é, portanto, um processo cognitivo para distinguir a pegada como um rastro de algo que pode fazer sentido.

Desse modo, o rastro pode ser entendido como uma consequência/uma observação e interpretação de uma inscrição produzida por um processo. Pois então há primeiramente o processo, que faz inscrição/ou pegada no ambiente onde acontece a interação. A pegada se torna rastro quando ela é percebida e é associada com um sentido ou uma significação. Vamos pensar a vida na Terra com sua biodiversidade e seu ambiente transformante, dois temas que os biólogos estudam e analisam.

Se tomaríamos a hipótese que a origem da vida em nossa planeta Terra é aquática, podemos dizer que a água é uma pegada de algo, de um processo que permitiu a sua formação ou a sua chegada na Terra. Ela se tornou rastro quando nós, seres inteligentes, entendemos essa substância e determinamos suas qualidades: é um líquido incolor, sem cheiro e transparente, composto de hidrogênio e oxigênio, de fórmula química H2O. Ela é um dos principais componentes da biosfera e cobre a maior parte da superfície do planeta.

Cerca de 71% da superfície da Terra é coberta por água em estado líquido. Do total desse volume, 97,4% aproximadamente, está nos oceanos, em estado líquido. A água dos oceanos é salgada: contém muito cloreto de sódio, além de outros sais minerais. Mas a água em estado líquido também aparece nos rios, nos lagos e nas represas, infiltrada nos espaços do solo e das rochas, nas nuvens e nos seres vivos. Nesses casos ela apresenta uma concentração de sais geralmente inferior à água do mar. É chamada de água doce e corresponde a apenas cerca de 2,6% do total de água do planeta. Cerca de 1,8% da água doce do planeta é encontrado em estado sólido, formando grandes massas de gelo nas regiões próximas dos pólos e no topo de montanhas muito elevadas. As águas subterrâneas correspondem à 0,96% da água doce, o restante está disponível em rios e lagos4.

A água é a fonte de toda a vida. Ela apareceu na Terra cerca de 4 bilhões de anos atrás. E é gracas às minúsculas “algas azuis” (verdes-azuis) que a vida surgiu. Essas algas azuis, da classe das oxifotobactérias5, realizam a fotossíntese oxigenada e podem, portanto, transformar a energia solar em energia química que pode ser utilizada pela célula fixando dióxido de carbono (CO2) e liberando oxigênio (O2).

Assim, a hipótese que a água possibilitou o surgimento da vida na Terra, coloca a água como rastro da vida. Na representação mental e simbólica que rastreamos sobre o significado do rastro, falamos cronologicamente de vários elementos:

No início tem o processo que deixa uma inscrição em um ambiente determinado. Essa inscrição é uma pegada do processo que aconteceu. Quando essa pegada é observada/estudada, ela ganha um senso/significado e se tornaum rastro/consequência.

Processo (interação/ambiente) → inscrição → pegada → observação (interpretação) → rastro (consequência).

Assim a água é um rastro de um processo que ele mesmo é rastro de algo, que nós ainda não conhecemos. Este processo ainda é um assunto de um debate científico baseado em duas hipóteses: interna e externa. A primeira sugere que a água deriva da desgaseificação do interior da Terra no momento de sua formação; a segunda propõe a sua chegada na Terra do espaço por asteroides e cometas. O que importa aqui é que a água está incluída em um sistema complexo e que está em interação permanentemente com seus ambientes. Isto nos leva para uma nova hipótese formulada nos anos 80 do século XX por Jacques Benvéniste6, médico e imunologista francês, sobre a memória da água.

Memória da água

Na sua hipótese, Benvéniste enfatiza que a água tem a capacidade de reter propriedades de substâncias que nela estiveram diluídas, mas que não mais se encontram ali. Por consequência a água tem uma memória7. Uma hipótese que produziu polêmicas científicas e foi muito criticada na medicina. O estudo8 realizado pelo pesquisador e sua equipe mostrou que as moléculas da matéria teriam uma forma de memória que permanece, mesmo após fortes dissoluções, ao passo que qualquer rastro físico da molécula desapareceu por completo. Seria uma espécie de “pegada”, da memória, ainda ativa, embora indetectável. Ou seja “as moléculas da água de alguma forma retiveram uma memória dos anticorpos com os quais haviam entrado em contato anteriormente, de modo que um efeito biológico permaneceu quando os anticorpos não estavam mais presentes”9.

Assim sendo, qualquer substância que entra em contato com a água deixa rastros. A água tem a capacidade de receber e registrar a pegada de qualquer influência externa, memorizando tudo o que está acontecendo em seu ambiente próximo. A composição química da água permanece como está, mas sua estrutura reage, como o sistema nervoso reage a cada irritação. Isso é dito, podemos pensar a água como um disco rígido cheio de informações? Se for possível, nós precisamos conhecer sua organização, seu novo alfabeto, porque a estrutura molecular é o alfabeto da água.

A água, presente nos corpos de muitos animais incluindo os humanos, é uma ação de informação10. Porque dentro do corpo humano tudo está conectado. As informações circulam além do espaço e do tempo. E a estrutura da água é fundamental e é a chave para muitos fenômenos biológicos e físicos.

Esse postulado mostra a dimensão informacional e comunicacional da água e consolida seu entendimento como rastro/consequência de processos diversos. O fenômeno elétrico mínimo no corpo humano permite que as células se comuniquem umas com as outras. Essa comunicação intercelular pode ser modificada pelos campos elétrico, ambiental e eletromagnético? Se isso for provado, poderíamos identificar a presença de vírus ou bactérias em conexão com patologias infecciosas por meio de sinais magnéticos eletrônicos? Poderíamos parar a transmissão do SARS-CoV-2 que causou a morte de centenas de milhares de pessoas no mundo e perturbou a vida econômica e social? A minha pergunta vem de uma esperança mais de que de uma evidência biológica, por que não sou biólogo e não me permito teorizar na biologia molecular ou na medicina. E a resposta, se houver uma, fica nos rastros, que constituem a memória da água, quem poderiam trazer, talvez, clarificações e novas perspectivas.

Memória digital

Os rastros biológicos e antropológicos, fragmentos de ossos, nos mostram que a origem de homem vem dos Hominínios (Hominina) que compõem uma subtribo de primatas Hominídeos11. O fóssil mais antigo atribuído ao gênero Homo foi descoberto na Etiópia e remonta a 2.8 milhões de anos atrás.

O Homo sapiens é a única espécie ainda viva da família dos Hominídeos e é o único representante atual do gênero Homo, estando as demais espécies extintas. A espécie surgiu há cerca de 300-350 mil anos na região leste da África. Ele distingue-se por sua capacidade de exteriorizar, não apenas seu corpo, mas sobretudo suas funções cognitivas12. Com a ferramenta, o Homo sapiens coloca sua memória fora de si mesmo, adicionando às memórias genéticas e nervosas uma terceira memória, que abre a possibilidade de um patrimônio e de uma cultura.

Se reduziríamos a memória a uma capacidade psíquica de registrar a experiência vivida pelo sujeito, nós negamos a ela qualquer dimensão coletiva. De acordo com Louise Merzeau (2006)13, a memória é outro nome da transmissão, opondo-se ao presente comunicativo a profundidade do tempo longo – aquele dos arquivos, afiliações e rituais.

No seu Livro Rogue Archives: Digital Cultural Memory and Media Fandom (2016) [Arquivos malandros: memória cultural digital e fãs de mídia], a pesquisadora americana Abigail De Kosnik examina a prática de arquivamento na transição da mídia impressa para o digital. Ela escreve que os “Estudos em Memória” remontam ao menos até o Fedro, escrito por Platão no século 4; mas o campo em sua forma contemporânea foi iniciado por Maurice Halbwachs no seu livro Les Cadres Sociaux de la Mémoire (1952) [Os quadros sociais da memória], no qual Halbwachs articulou sua teoria de memória coletiva. Segundo ele a memória é menos o produto de uma apreensão do que de uma construção, onde a montagem de fragmentos exige a retransmissão dos quadros sociais da linguagem, do espaço e do tempo. Halbwachs argumenta que, como os indivíduos formam suas memórias na sociedade, é também na sociedade que eles recordam, reconhecem e localizam suas memórias. Eu entendo então que essas memórias são feitas de rastros individuais e coletivos.

O digital

Cada era sociotécnica da memória produziu sua própria “memória da totalidade”. Durante muito tempo foi sem dúvida a biblioteca que representou esta totalidade. Até o advento da tecnologia digital, podíamos distinguir duas classes de objetos técnicos:

  1. Memórias externas dedicadas ao registro das informações;
  2. Ferramentas e instrumentos destinados a prolongar uma faculdade física ou cognitiva.

Na era digital, qualquer máquina registra e processa informações. De automóveis a computadores, câmeras a consoles de jogos e telefones a eletrodomésticos, a memória se tornou um componente em todos os nossos artefatos.

A web é ao mesmo tempo um novo meio que se complementará e / ou competirá com os meios anteriores, mas também uma meta-mídia (meta-meio) que engloba todos os outros e que os transformará em uma indústria de memória através das possibilidades de acesso transversal e arquivo permanente.

Vannevar Bush, um dos pioneiros da Internet, apresenta em um artigo publicado em 1945 [Bush V. (1945). Como podemos pensar. The Atlantic], um aparelho que se chama Memex, que é um dispositivo eletrônico conectado a uma biblioteca capaz de exibir livros e mostrar filmes. Bush descreve o Memex como uma extensão da memória humana: “é um suplemento ampliado e íntimo de sua memória (humana)”. [It is an enlarged intimate supplement to his memory].

Nos ambientes digitais, toda atividade deixa rastros, tudo é memorizado automaticamente, instantaneamente, muitas vezes sem a nossa vontade, sem o sabermos e sem o nosso controle. A hipermemória, da qual pensamos que a internet vai realizar, é apenas uma memória “maquinica”, uma anti-memória . Ela é uma memória de conteúdos, relações, comportamentos (Merzeau, 2012)14. Tudo é rastro, e as redes vão exigir esforço, investimento, regulação, para esquecer ou para organizar e produzir memória. No livro Rastros digitais: da produção para a interpretação [Traces numériques : de la production à l’interprétation (2013)], orientado pelos Béatrice Galinon-Mélénec e Sami Zlitni da Universidade Le Havre Normandie, os autores reunidos concordam com a materialidade da inscrição digital e com a ideia de que o estatuto de rastro dado à inscrição digital advém da forma como a olhamos, do leitor receptor, das relações e interações com o ambiente.

A água e o documento

Voltamos para a memória da água. A inscrição que faz pegada nos faz pensar, nós da área da informação e da comunicação, no documento ou no fragmento documental. Por quê? Só existe documento quando um objeto material ou eletrônico tem forma, conteúdo e função. Seguindo Jean-Michel Salaün , um documento é representado em três dimensões: forma, conteúdo e meio (Salaün, 2011): o que é visto, o que é lido e o que é conhecido [le Vu, le Lu et le Su].

A função do documento é a memória. E esse ponto é muito importante. Nós registramos informações sobre um objeto para transmiti-lo ou preservá-lo para referência. A pegada carrega informações gravadas que o rastro lhe confere valor e significado. Se a água, em sua interação com os diferentes ambientes em que circula, registra diversas informações (a memória da água), essas inscrições / gravações formam um conteúdo. A água, neste caso, é um objeto material que se assemelha ao documento porque não para na fase de registro da informação em suas moléculas, mas constrói sua memória, que é a função de memória do documento. A última função dá à água a capacidade de superar barreiras do espaço e do tempo para transmitir informações e assim fazer parte de uma memória coletiva, que é a nossa.

Poderíamos aprender desta hipótese/modelo que a água nos mostra, para investir nossos rastros em projetos de memória? A pandemia e a aceleração na transformação digital em todos os cantos nos levam para pensar nossos rastros em uma continuidade, em uma comunidade/um contexto, em memória compartilhada. Se a coleção de rastros se abre para uma reapropriação, ela implica também uma coletivização desses rastros. Já que tudo o que fazemos hoje, na era pandêmica, é uma escrita digital, uma inscrição, a memória que retomamos o controle deve, antes de mais nada, ser exportável, independente de sistemas e ferramentas, protegível, pesquisável, configurável e arquivável. Seu uso não deve ser restrito a especialistas em gestão da informação, mas tão acessível para todo mundo. São desafios que interrogam a biologia, como todas as disciplinas e os setores, em nosso mundo digital, pandêmico e pós-pandemia.

Muito obrigado pela sua atenção.


1Reeves H., de Rosnay J., Coppens Y., Simonnet D. (1995). La plus belle histoire du monde, Le Seuil, Paris.

2Editora-chef do “Ichnos-Antropos. Le carnet de L’Homme-trace”https://onhumantrace.hypotheses.org/

3Mille A. (2013). Traces numériques et construction de sens, in Galinon-Mélénec B., Zlitni S., Traces numériques : De la production à l’interprétation, CNRS Éditions, Paris, p. 111.

4Só Biologia, A Água no Planeta, https://www.sobiologia.com.br/

5Cyanobacteria, Wikipedia, https://fr.wikipedia.org/wiki/Cyanobacteria

6Em 1988, Jacques Benveniste publicou na revista científica britânica Nature um trabalho de pesquisa sobre uma memória hipotética da água.

7Ina (2019). 1988, Jacques Benveniste et la mémoire de l’eau, https://www.ina.fr/contenus-editoriaux/articles-editoriaux/1988-jacques-benveniste-et-la-memoire-de-l-eau/

8Davenas, E., Beauvais, F., Amara, J. et al. Human basophil degranulation triggered by very dilute antiserum against IgE. Nature, vol. 333, p. 816–818 (1988). https://doi.org/10.1038/333816a0

9Ball Ph. (2004). The memory of water, https://www.nature.com/news/2004/041004/full/news041004-19.html#B1

10Milbert B. (2016). Mémoire de l’eau et Biologie numérique, https://www.youtube.com/watch?v=pEOusCBaDg4

11Hominidae, Wikipédia, https://fr.wikipedia.org/wiki/Hominidae

12As funções cognitivas são as habilidades de nosso cérebro que nos permitem comunicar, perceber nosso ambiente, concentrar-nos, lembrar um evento ou acumular conhecimento.

13Merzeau L. (2006). Mémoire. Médium, vol. 1, n° 9, p. 153-163.

14Merzeau L. (2012). L’industrialisation de la mémoire, Colloque Les Métamorphoses numériques du livre II, l’Agence régionale du Livre Paca, Aix-en-Provence.

Como “manufaturar” no mundo digital?

Este texto é a intervenção de Dr. Hadi Saba Ayon na reunião do grupo de pesquisa TIPEMSE na Universidade do Estado da Bahia no Brasil sobre a “Emergência da Literacia Digital no Cenário da Sociedade Pandêmica do Séc. XXI”. 

O que é o digital? Por que manufaturar hoje no mundo digital?

Manufaturar é produzir com trabalho manual. Manufatura significa obra feita à mão.No processo manufatureiro vigora a divisão do trabalho, onde cada operário realiza uma operação utilizando instrumentos individuais. A manufatura sucedeu o artesanato, no século XV, como forma de produção e organização de trabalho[1].

Eu uso o verbo “manufaturar” como metáfora, porque o uso da tecnologia na era digital ainda passa pelas mãos. Computadores, celulares, tabletes, objetos conectados, todos esses dispositivos precisam da mão, de dedos para produzir e compartilhar um conteúdo. Mas o ecossistema digital, na sua essência e no seu funcionamento, não é manual nem opera artesanalmente. Ele é informático, computacional, binar, e consiste num conjunto de dispositivos eletrônicos (hardwares) capazes de processar informações de acordo com programas (softwares) e em rede.   

Seguindo Milad Deouihi, historiador de religiões e detentor da cátedra de humanismo digital na Universidade de Paris-Sorbonne, o digital é a ultrapassagem da tecnologia computacional para os usos culturais no mundo digital. Ele é:

Um ecossistema dinâmico animado pela normatividade algorítmica e habitado por identidades polifônicas capazes de produzir comportamentos perturbadores (Doueihi, 2013).

Este “urbanismo virtual nascente” está mudando as nossas sociedades e a construção dos espaços que habitamos. Ele se caracteriza com:

Fronteiras e limites que definem espaços íntimos ou reservados para o culto, espaços de conhecimento ou entretenimento, espaços marcados pelo uso e frequentados pela prática. “Um urbanismo híbrido, portanto, habitado por rastros, pedaços de documentos, fragmentos, mas também animado pela voz e corpo, uma temporalidade outra (Doueihi, 2011).

Brutalmente, o SARS-CoV-2 invadiu as nossas sociedades colocando a nossa civilização em perigo. A pandemia de Covid-19 nos obrigou a mudar muitos hábitos de vida. Ela impactou a interação social transformando nossos modelos de viver (morar, trabalhar, se socializar, estudar, viajar etc.). As circunstâncias dessa situação nos levam a pensar no surgimento de um novo mundo. Quais serão suas figuras? Como fazer saber, informar e comunicar? Como tomar parte e intervir em uma ação? Como compartilhar e fazer parte integrante em uma atividade, de uma comunidade? Como associar-se pelo pensamento ou sentimento? Como participar e construir uma sociedade digital e de conhecimento? Quais identidades e habilidades neste novo mundo? Quais comunidades? Quais trabalhos?

Muitas questões, que nos perguntamos, eu e o Professor Carlos Antonio Villa Guzmán da Universidade de Guadalajara no México, em nossa inciativa/texto escrito (que vai ser publicado logo) para emergir um coletivo internacional PANDEMIA, CULTURA DIGITAL E PARTICIPAÇÃO, que pensa a cultura participativa no mundo digital, pandêmico e post-pandemia.

Como explicar a cultura participativa e reinventar o nosso cotidiano? Como a pandemia redefine o nosso espaço e as estruturas arquitetônicas no ambiente digital? Mais questões para debater com um grupo de colegas em um webinário intitulado “Post pandemic, participation matters” (Pós-pandemia, questões sobre a participação) na Escola da Comunicação na Universidade Católica da Indonésia em Jacarta no final deste mês. Muitas questões, e poucas respostas até o momento.

E hoje estou com vocês no Grupo de Pesquisa TIPEMSE na Universidade do Estado da Bahia para debater sobre a “Emergência da Literacia Digital no Cenário da Sociedade Pandêmica do Séc. XXI”. Pensar a educação no digital começa para pensar o digital, não só como suporte e mídia, mas sobretudo como ambiente: Isso é o primeiro passo para uma literacia ou uma transliteracia que nós precisamos.

Seguindo Louise Merzeau, Professora e pesquisadora francesa que faleceu em 2017 e deixou um trabalho científico notável, a transliteracia se refere as:

1. Habilidades criativas e produtivas (como conceber, realizar, modificar);

2. habilidades do ambiente (buscar, achar e entender a informação, analisar uma situação ou um processo);

3. e as habilidades reflexivas (entender que os sistemas digitais tem valores, e seu uso e seu domínio permitem fazer sociedade com um olho crítico).

A transliteracia envolve 3 dimensões:

1. Uma capacidade para desenvolver competências individuais;

2. uma capacidade coletiva para agir com os outros;

3. e uma capacidade política para agir no ambiente e mudá-lo.

Neste sentido, mais de que restringir ou proteger nossos dados, nos temos interesse em fazer um rastreamento, ou seja, inserir nossos rastros digitais em uma comunidade, um contexto e uma temporalidade para sobreviver no mundo post-pandêmico e digital.

Obrigado.


[1] No site dos Significados: https://www.significados.com.br/