Este texto foi apresentado na 1ª Jornada Acadêmica Virtual do curso de Ciências Biológicas do Centro Universitário Uninorte, intitulada “Meio Ambiente & Cultura Digital em frente à Crise Mundial Sanitária”, em Rio Branco – Acre no Brasil em junho 2020.
Bom dia a todas, bom dia a todos,
Agradeço o convite de minha amiga estimada, a Professora Solange Maria Chalub Bandeira Teixeira, coordenadora pedagógica do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas no Centro Universitário Uninorte em Rio Branco-Acre. É uma honra para mim estar com vocês neste evento, a primeira feira acadêmica virtual do curso de Ciências Biológicas da Uninorte, que está acontecendo na cidade de Rio Branco, cidade amada, para compartilhar com vocês minha reflexão e ouvir as suas. Meus cumprimentos para a diretoria institucional do Centro Universitário, pelas professoras e pelos professores participantes neste evento, as professoras admiradas Janaína Almeida, Sandra Galeotti e Vera Reis, pelo professor Janeo Nascimento da Silva, amigo querido, pelos acadêmicos do sétimo período de Ciências Biológicas da Uninorte e pelos convidados.
Peço desculpa de não poder acompanhar todas as sessões por causa de fuso horário e de minhas responsabilidades familiares. Por entanto, desejo para cada uma e cada um de vocês, um webinário produtivo e uma boa saúde hoje e sempre.

Por que falamos hoje da biologia e da cultura digital? Qual é o relacionamento entre os dois? Qual é a vinculação com a pandemia de Covid-19? Como explicar este cruzamento, que eu escolhi no título de minha fala? Por que eu, que não sou biólogo, vou falar da biologia, e vocês, que não são da área da informação nem da comunicação, vão falar ou se interessar na tecnologia digital ou na cultura digital?
A minha reflexão hoje sobre a biologia e a cultura digital nesta conferência tem vários motivos. Fora do fato que eu conheci vocês, a turma da biologia, em Rio Branco-Acre em 2018 durante minha missão do ensino e da pesquisa no Brasil – e de sua presença importante e eficiente nas minhas palestras lá – a biologia e o digital têm muitas conexões. Eles enfrentam hoje, uma situação complicada imposta pela pandemia que afeta principalmente nosso organismo biológico e consequentemente nosso ambiente, nossa interação e nossa coexistência.
Deveríamos ter falado sobre a biologia e a cultura digital desde um longo tempo, e não esperar a invasão do vírus Sars-Cov-2 em nossas sociedades e nossas vidas para pensar nisto. A pandemia nos lembra, que nós humanos, antes de seremos sujeitos digitais, usuários da tecnologia, somos animais (sociais) frágeis e vulneráveis aos ambientes onde vivemos. Ela nos alerta que não vivemos sozinhos na terra, mas com outras espécies, e que a nossa arrogância humana tem limite e tem consequências graves quando se torna exterminação, destruição e atrocidade. Ela nos lembra também de nossa animalidade fundamental, o “fundamento biológico de nossa humanidade”, como a antropóloga francesa Françoise Héritier a chamou.
Os sistemas (pensamento sistemático)
Quando penso na biologia, a primeira coisa que me vem à cabeça é o sistema. A biologia é a ciência da vida. Ela cobre parte das ciências naturais e da história natural dos seres vivos. Ela expande-se do nível molecular, ao da célula, depois do organismo, ao nível da população e do ecossistema. Todas estas espécies são feitas de sistemas. E todas funcionam sistematicamente para dar a vida. A tecnologia digital é basicamente computacional e funciona também em sistemas. O ecossistema digital é feito de redes, de sistemas, que combinam seres humanos, objetos conectados, linguagens que permitem os usos sociais e culturais. Estes elementos interagem de modo animado para produzir uma realidade e fazer sentido. O ecossistema digital é dinâmico, como os organismos biológicos.
Urie Bronfenbrenner, psicólogo e pesquisador americano, divulga nos anos 1970-1980 sua teoria conhecida como “a ecologia do desenvolvimento humano”, segundo a qual os diferentes ambientes nos quais as pessoas participam influenciam diretamente sua mudança e seu desenvolvimento cognitivo, moral e relacional. Ele apresenta 5 níveis de sistemas que constroem o ambiente de cada organismo/indivíduo: Microsistema, Mesosistema, Exosistema, Macrosistema e Chronosistema.
Em oposição ao determinismo biológico, os interacionistas (movimento interacionista simbólico) estudaram a interação social e a construção da identidade em uma visão sistemática colocando o indivíduo no sistema dele para entender seu comportamento e seu lugar na sociedade. A comunicação, como a psicologia social, define o indivíduo em relação ao sistema onde ele está interagindo.
Em biologia, a gente fala de moléculas portadoras de informações quando nos referimos às características funcionais do DNA. Os sistemas veiculam a informação de um componente para o outro para funcionar e comunicar. Seja no interior de um sistema ou em relacionamento entre dois sistemas ou mais, é a informação que mantém a atividade do sistema ou permite a sua transformação.
No ecossistema digital a informação é binária (digital) e se constrói em vários níveis: é uma pegada, é um rastro, é um dado, é um metadado até chegar à informação. Se torna um conhecimento quando ela faz parte de uma estrutura cientifica aprovada e adquira a habilidade para explicar e mudar fenômenos e situações. Segundo Louise Merzeau, Professora e pesquisadora francesa, que tem trabalhos relevantes sobre a mediologia, a memória, a cultura e os rastros digitais, a informação e o processamento de dados digitais nos envolvem hoje. São muitos objetos conectados que nos cercam, e outros que vão ser conectados com informação, com dados, com cálculo, sendo necessário avançar para um pensamento ambiental, ecológico para pensar e entender a cultura digital. Este processamento me faz pensar de novo na biologia. A informação que circula dentro dos sistemas biológicos (humanos, animais, naturais etc.) não é somente uma entidade para comunicar, mas também para preparar ou permitir a mutação e a evolução do organismo no ambiente dele. Sem se colocar na posição do biologismo ou mesmo de fatalismo, os trabalhos de Charles Darwin e Alfred Russel Wallace, sobre a Teoria da Evolução, mostram que a luta pela existência se refere às diferentes habilidades dos indivíduos para sobreviver e as adaptações são sempre relacionadas a um ambiente em mudança. Os dois antropólogos e biólogos britânicos admitem que, na maioria dos casos, órgãos e instintos exibem variações infinitesimais que influenciam o vigor dos organismos e sua “chance de sobrevivência”. Eles deduzem que há uma tendência para as espécies formarem novas variedades indefinidamente e as perpetuarem. A seleção natural, como eu entendo, se refere à interação entre a espécie e o ambiente, mas ultrapassa a consciência e o controle do organismo para administrar e gerir suas condições. E para dizer que a força e a aptidão do dinamismo da mutação e da evolução agem em sistemas onde o indivíduo, como organismo biológico, pode influenciar e ser influenciado pelos outros componentes (biológicos, naturais, políticos, educacionais, sociais, artefatos etc.). Eu exponho este detalhamento sobre a “seleção natural” para pensar o “humanismo digital”[1] em sua “mutação antropológica” que nos leva a repensar o que é o humano[2] na era digital e pandêmica. A relação com a informação digital nos mostra que quem constrói no ambiente digital não é só o humano usuário, mas há logicas técnicas autônomas inteligentes que produzem conosco nossos rastros, que os tratam, que os analisam e que abrem ou fecham caminhos e oportunidades. Esta inteligência artificial precisa ser questionada pelos cientistas para não perder o controle sobre a nossa sobrevivência. Voltando a pandemia neste contexto, ela nos mostra o caráter primordial da informação para resistir e sobreviver. A informação científica certa em oposição à informação fake ou errônea. O historiador Yuval Noah Harari[3] diz em uma entrevista recente com a BBC[4], que a informação é o combustível virtual para tudo o que fazemos nos níveis nacional e local. Esta pandemia exige uma cooperação internacional. Eu adiciono, ela precisa também dos biólogos para ajustar, confirmar e orientar.
Vírus e trabalho colaborativo
O vírus Sars-Cov-2 apareceu brutalmente em nossas sociedades. O vírus colocou a nossa civilização e a nossa existência em perigo. Este vírus é novo, mas o vírus como entidade, existia antes de nossa existência humana. A idade dele talvez volte para a idade da vida na terra.
A palavra “vírus” designa uma partícula microscópica, um agente infeccioso que só pode se espalhar se encontrar um hospedeiro[5]. Alguns vírus infectam humanos, outros infectam animais e outros infectam plantas. Mas nem todos eles causam doenças[6]. Hoje a humanidade está preocupada com a desaceleração da circulação de novo coronavírus e está investindo e se focando na produção da vacina. Mas por que não pensamos na origem deste vírus? De onde vem? Quais são os erros que permitiram a sua transmissão? Didier Sicard, especialista em doenças infecciosas na Franca, fala da indiferença no ponto de partida desta pandemia. “Como se a sociedade estivesse interessada apenas no ponto de chegada: a vacina, os tratamentos, a reanimação. Para que não recomeça deve-se considerar que o ponto de partida é vital”, ele diz. Esta missão precisa um trabalho colaborativo pluridisciplinar e internacional. Isso não é novo para os biólogos, onde colaboração e a coletivismo fazem parte de seus hábitos e atitudes. O trabalho colaborativo é também um atributo da cultura participativa, onde os mais experientes transmitem seus conhecimentos aos novatos. A cultura digital é fundamentalmente colaborativa. Ela se torna participativa quando se refere à construção da memória digital, para permitir o armazenamento de rastros, seus compartilhamentos em qualquer contexto técnico e temporal para fins uteis, e finalmente para combater o esquecimento. É neste sentido que o digital se torna terra de projetos colaborativos, onde os biólogos têm que achar seus lugares. Alguns já fizeram. Tem um projeto que chamou minha atenção, que se chama “Bio Num” ou “Unidade de Ensino de Cultura Biológica Digital”[7] feito pelos estudantes de licenciatura em Ciências Biológicas na Universidade Paris Diderot na França. O objetivo geral é ensinar de maneira diferente na universidade: ensinar, em qualquer nível, é entender mais profundamente o conhecimento transmitido. Em outras palavras, o projeto, que é um website com um blog, é feito para transmitir conhecimento biológico para todos. Os artigos têm conteúdo biológico diversificado que trata temas e problemas da área para o grande público. O trabalho incita os professores e os estudantes a colaborar e escrever e transmitir a biologia diferentemente. A pandemia hoje empurra vocês, biólogos, a inventar seus cotidianos para transformar o nosso, e achar novos caminhos para manter nossa coabitação com a natureza. Quem conhece a natureza e seus fenômenos mais de que vocês?
Por que a biologia e a cultura digital no título de minha palestra? Talvez, eu digo, é para pensar no papel da biologia e dos biólogos na era digital, para produzir, divulgar e arquivar uma informação científica e de referência para todos. Esta missão, esta informação, pode constituir o nosso meio para lutar em tempos de epidemias e de pandemias, mas também pode achar a nossa orientação na era pós-pandemia.
Muito obrigado pela sua atenção.
[1] Noção proposta pelo historiador das religiões americano Milad Doueihi.
Doueihi M. (2011). Um humanisme numérique. Communication & Langages, vol. 1, n° 167, p. 3-15.
[2] Vitali-Rosati M. (2020). Pourquoi on ne peut plus être humaniste, Culture numérique, https://blog.sens-public.org/marcellovitalirosati/pourquoi-on-ne-peut-plus-etre-humaniste/
[3] BBC Hardtalk (2020). Coronavirus: Yuval Noah Harari, philosopher and historian, on the legacy of Covid-19, https://www.youtube.com/watch?v=gfVrin7Ybp8
[4] British Broadcasting Corporation
[5] Schlegel T. (2020). Didier Sicard : Il est urgent d’enquêter sur l’origine animale de l’épidémie de Covid-19, France Culture, https://www.franceculture.fr/sciences/didier-sicard-il-est-urgent-denqueter-sur-lorigine-animale-de-lepidemie-de-covid-19
[6] Idem.
[7] Bio Num, https://bionum.univ-paris-diderot.fr/