Este texto apresenta o discurso de Dr. Hadi Saba Ayon (pesquisador na rede de pesquisa Francesa CDHET na Université Le Havre Normandie) no segundo Seminário Internacional de pesquisa em Design organizado pelo Departamento de Design na Universidade Federal de Brasília (UnB), 13-14 de Novembro de 2018 no Espaço cultural Renato Russo em Brasília.
A sua abordagem se inspira de e se apoia ao texto de Marcello Vitali-Rosati (Université de Montréal no Canadá; Twitter: @monterosato) intitulado “Pour une pensée préhumaine” (2018).
-As fotos são da Louise Merzeau (@lmerzeau)
-As ilustrações são da Laísa Rebelo (@laisarebelo)
Como situar o indivíduo no mundo contemporâneo? Podemos falar de mutação cultural, tecnológica, mas também antropológica que o digital está produzindo em nossas sociedades por meio da rastreabilidade e da memória? Podemos entender a comunicação como uma ultrapassagem da interação social ao rastro digital, de construção da identidade à construção da memória?
Pensar ou repensar o indivíduo em relação com seu mundo é questionar ou re-questionar o construtivismo (de século XX) que marcou trabalhos em várias áreas científicas- especialmente em antropologia, em comunicação, em antropologia da comunicação e em sociologia (referências de nossa reflexão hoje), e em particular duas Escolas americanas, aquelas de Chicago (interacionismo simbólico) e de Palo alto (construtivismo).
Pensar o indivíduo em relação com o digital é pensar a relação entre a calculabilidade e o pensamento. É interrogar o processo da rastreabilidade digital e suas consequências sobre a construção da sociedade, bem como sobre o humano, um “Homem-rastro” (Béatrice Galinon-Mélénec, 2011) , um produtor de rastros e ao mesmo tempo uma construção de rastros, o todo funcionando em um ciclo e em um continuum, fazendo sistema.
Calculabilidade e pensamento?
O rastro e a cultura digital foram objetos de trabalho e análise por diversas escolas e correntes recentes, em particular a Escola Francesa sobre o rastro (que reuni professores e pesquisadores de várias áreas e diferentes Universidades Francesas) e outras correntes canadenses em Humanidades Digitais (Digital Humanities), em particular na Universidade de Montréal e de Ottawa que estudaram os usos, as condições e os desafios dessa nova cultura, que o Pierre Lévy chama de “Cibercultura” (1997-1999).
Nesta apresentação, vou tentar pensar e debater com vocês (em breve, em menos de 20 min) duas noções, a identidade e a memória, em uma abordagem epistemológica, histórica e contemporânea, aquela de construtivismo e sua versão na era digital. De construtivismo até a teoria de Editorialização (sugerida pelo Marcello Vitali-Rosati e al.) vou questionar as novas formas e os novos processos de ter/fazer identidade (design) e memória.
Construtivismo
“Pode-se separar o pensamento e o ser?”, pergunta-se Marcello Vitali-Rosati em seu recente artigo intitulado “Pour une pensée préhumaine” (Por um pensamento pré-humano), apresentado na conferência “Repenser les humanités numériques/Re-thinking the Digital Humanities”-“Repensar as Humanidades Digitais” na Universidade de Montréal em Outubro de 2018.
O pensamento deveria ser necessariamente humano? O tempo que estamos vivendo, ele adiciona, nos empurra a fazer a pergunta novamente porque as mudanças técnicas que a caracterizam são baseadas na questão do humano e sua relação com o não-humano, o maquínico e a técnica.
Historicamente, o construtivismo vem da filosofia da ciência. Este campo de estudo procura, em particular, entender o que funda o conhecimento e, em particular, os critérios que fazem que uma atividade seja denominada científica. O construtivismo refere-se à uma abordagem baseada na construção do objeto/realidade pelo sujeito.
Segundo a teoria de Kant (que é às vezes estudada sob o termo da revolução copernicana), o conhecimento dos fenómenos resulta de uma construção realizada pelo sujeito. Mas Kant, nunca formulará a estratégia construtivista com clareza (Rockmore, 2007) .
Cada coisa pode ter suas próprias qualidades, independentemente de serem percebidas por um sujeito ou não? As qualidades podem ser primárias e secundárias. As primeiras são qualidades próprias, independentemente de serem percebidas por um sujeito ou não. As segundas dependem dos modos de percepção.
A distinção entre essas duas qualidades é criticada por Kant. Segundo ele, essa distinção é dogmática porque não pode ser demonstrada. Ele escreve no livro Prolegômenos – A Qualquer Metafísica Futura Que Possa Apresentar-Se Como Ciência (1865):
“Eu digo, ao contrário, que as coisas nos são dadas como externas a nós e ajustáveis aos nossos sentidos, mas que nada sabemos sobre o que elas podem ser em si mesmas, que só conhecemos seus fenómenos; isto é, as representações que fazem em nós quando afetam nossos sentidos”.
O construtivismo hegeliano é entendido como uma reação ao proposto por Kant. Hegel explora ainda a estratégia construtivista na Fenomenologia do Espírito. Em sua introdução, ele descreve como a identidade do sujeito e do objeto é construída. O conhecimento é transformado em verdade no ponto final, onde sujeito e objeto, aquele que sabe e o que sabemos, liberdade e necessidade se sobrepõem.
O “construtivismo hegeliano” monstra que o ser humano está sempre situado em um contexto social; que não há conhecimento a priori, mas apenas a posteriori, e que o conhecimento não é teórico no sentido kantiano, mas, pelo contrário, prático.
“O construtivismo hegeliano se resume a um processo de formular e testar teorias sucessivas, ou trabalhar hipóteses, submetendo-as à prova da experiência” (Rockmore, 2007).
De acordo com Hegel, nós não avaliamos nossas afirmações cognitivas absolutamente, nem abstrata nem teoricamente, nem mesmo no plano a priori, mas apenas no plano posterior.
Interação social
É nesse sentido que o interacionismo simbólico entende o humano, como ator interagindo com seu ambiente. George Herbert Mead (figura de referência dessa corrente) distingue duas formas de interação: não-simbólica e simbólica. Os participantes de uma interação não-simbólica respondem diretamente às ações dos outros. Enquanto no segundo, as pessoas trocam indicações e símbolos, definem a situação e interpretam suas respectivas ações agindo com base no significado produzido por essa interpretação.
Assim, o comportamento individual não é completamente determinado nem completamente livre, é parte de um debate permanente que permite a inovação. A interação é a única medida de análise. Seguindo Mead, o Self é o resultado da relação de um indivíduo com seu ambiente social. O processo de experiência social não é psicológico, mas é realizado em “uma transação particular entre um organismo físico e seu ambiente social: a comunicação” (Bonicco-Donato, 2014) .
De acordo com Mead, o Self é uma construção social e pode funcionar como um objeto e agir como mediador, fornecendo estímulos para controlar a ação. O Self também pode funcionar como sujeito, a nossa singularidade reflexiva, frente à adoção de atitudes do “outro”.
Construtivismo e realismo
O construtivismo faz parte de um debate que se opõe ao realismo. O objeto do confronto é como o conhecimento é adquirido e, em particular, o papel do pesquisador nesse processo.
O realismo supõe a existência de uma realidade objetiva independente do humano: os objetos de pesquisa são considerados independentes do observador e a influência que pode ter sobre seu objeto é ignorada. Se o objeto é verdadeiramente independente, então não há laço cognitivo que nos permita conhecê-lo. Neste caso, não se pode “credivelmente” afirmar conhecer um objeto independente, por exemplo, um objeto externo, tão fora da mente/do espírito.
Quanto ao construtivismo, ele propõe estudar uma construção social de objetos e fenômenos.
Seguindo o realismo, temos um mundo que existe independentemente de nós, e que é totalmente inacessível para nós. Por outro lado, temos um mundo que existe apenas porque temos acesso a ele, mas isso não tem outra existência do que em nosso acesso a ele.
Isso significa que para acessar ao mundo, o mundo tem que existir antes de nos, e o nosso acesso vem depois? Para resolver esse paradoxo, certos idealistas, como George Berkeley, acharam uma explicação: o mundo é apenas o acesso ao mundo, acesso que seria o resultado de uma mediação original, eterna e primária. A mediação não seria um gesto feito pelo sujeito para acessar o mundo, mas uma dinâmica inscrita no próprio mundo.
Digital
No ambiente digital, cada atividade produz/deixa rastro-s. Esses rastros são produzidos automaticamente (qualquer atividade conectada) e desaparecem à nossa visão e apreensão. São tratados em processos invisíveis que fogem do controle de usuários.
Homem/Mulher-rastro?
“É impossível não deixar rastros” escreve Louise Merzeau (2016) emprestando a famosa expressão da Escola de Palo alto “É impossível não comunicar” (não ter comportamento). Seguindo Alain Mille (2013), o rastro digital é constituído a partir de pegadas digitais deixadas (voluntariamente ou não) no ambiente informático durante os processos computacionais. Os rastros digitais não são mensagens. Eles são “unidades isoláveis, receptivas e calculáveis” (Roger T. Pédauque, 2006).
Existem vários tipos de rastros (George, 2009; Merzeau, 2013):
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- Os “rastros de navegação” (que automaticamente afirmam o que um usuário comenta, para onde ele está indo, como ele se comporta);
- os “rastros declarativos de perfil” (O que um usuário afirma de si mesmo);
- os “rastros ativos” (o que um usuário expressa, o que ele publica, o que ele edita, o que ele produz);
- os “rastros calculados” (que se refere ao que o próprio sistema calcula).
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Nossos rastros?
O digital chegou a um estágio em que não é mais possível pensar no termo instrumentação, ferramenta, externalidade (…) uma quantidade incrível de objetos, gestos, atividades, incluindo o mais familiares e diários integram hoje uma parte do digital. Isso resulta em uma situação onde o digital não está mais restrito aos objetos identificados como tais, computadores, celulares, tabletes, etc., é cada vez mais em todos os lugares em nosso ambiente (Merzeau, 2016). De acordo com Milad Doueihi (2013), o digital é “um ecossistema dinâmico animado pela normatividade algorítmica e habitado por identidades polifônicas capazes de produzir comportamentos perturbadores”.
O conceito de Humanidades Digitais levanta a questão da definição do humano e sua relação com a tecnologia e as máquinas. Milad Doueihi propõe em 2011 a noção de HUMANISMO DIGITAL (Pour un humanisme numérique), porque o digital não pode ser considerado como um simples conjunto de ferramentas, mas é uma cultura em si que muda nossa relação com o mundo e, finalmente, o nosso modo de ser humanos.
Mas como podemos entender a rastreabilidade digital? Ela “não é uma camada documental que surgiria depois de uma atividade, mas a própria condição de sua execução” disse Louise Merzeau (2013). O Self “Meadiano” é progressivamente constituído no processo de atividade social; a identidade digital não é. Ela é uma coleção de rastros. São os algoritmos que constroem essa identidade via a indexação de rastros. A identidade calculada, de que fala Fanny George no trabalho intitulado “L’identité numérique dans le web 2.0” (2008), é produzida a partir de um processamento da identidade ativa (dando pelas atividades de usuário) pelo sistema. Nesse processo, a construção identitária se realiza fora do sujeito, de sua presença e de seu acesso ao objeto.
O desafio da identidade digital hoje é que ela reúne o que se refere à nossa singularidade, nossa continuidade, nossos lugares de vida reais, mas ao mesmo tempo estamos no código, nos algoritmos, nas massas (de dados) que só podem ser processadas por máquinas e por modos de tratamento que servem para outras finalidades além de nossos fins pessoais.
Tratamentos maquínicos…
Estudar as redes sociais digitais nos leva para pensá-las como locais de armazenamento, disse Louise Merzeau. Nós enfatizamos a dimensão relacional ou comunicacional (industrial e de marketing), mas raramente pensamos nelas como locais de armazenamento.
Memória
Por muito tempo pensamos a memória em relação com o passado, como se for coisas que se acumulam ou se perdem, mas que estão por trás e que estão nas adegas, e que se acumulam em raios com poeira. A memória do humano é limitada, então ele deve inventar ajudas e próteses de memória para corrigir essa memória defeituosa. Acreditamos que para não esquecer, temos que memorizar. Tudo o que produzimos, escrevemos, arquivamos, serve para salvar e guardar pequenas parcelas que vão escapar por algum tempo ao esquecimento.
No mundo digital, as ferramentas, os suportes e o ambiente produzem uma inversão “antropológica”: não é mais a memória que é o fundo, é o esquecimento (sua regulação) que exige esforço, investimento e atenção. A “memória” é presente, automática e caótica. Toda atividade deixa rastros, tudo é memorizado automaticamente, instantaneamente, muitas vezes sem ser desejado, sem ser conhecido e sem ser controlado. Como e porque fazer memória na era digital?
Memória digital?
Pensamos por algum tempo que essa memória (digital) automática realizaria o auto-arquivamento de nossa modernidade e que a Internet realizaria o mito memorial da biblioteca integral. Mas a rastreabilidade digital revela hoje o que é: uma anti-memória em favor de uma previsibilidade do comportamento. Convertidos em coleções de rastros que eles não controlam mais, tanto os indivíduos quanto os coletivos devem se reinventar com áreas comuns que carregam perspectivas/objetivos memoriais, heurísticos e políticos. No ambiente digital, preservar não significa fixar, mas duplicar, circular e reciclar. Mais de que restringir ou proteger seus dados, o usuário tem interesse em fazer um rastreamento, ou seja, inserir seus rastros digitais em uma comunidade, contexto e temporalidade. Fazer memória digital significa construir um projeto comum com objetivos e governança comuns. Essa construção se realiza entre dois: o humano e o não humano.
Na Digital, existem indivíduos, comunidades e ambientes digitais que interagem e dão origem ao espaço digital. Mas há também um AMBIENTE que é o resultado dinâmico de um conjunto de interações entre diferentes forças. Essas interações surgem após indivíduos, comunidades e ambientes digitais.
As comunidades em rede?
A editorialização, noção sugerida pelo Marcello Vitali-Rosati, significa um conjunto de dispositivos técnicos e tecnológicos, de modo que as plataformas, a ergonomia, os gráficos, as palavras-chave, os links, os metadados e todas as atividades que permitem que um conteúdo seja produzido, formatado para um suporte digital e depois divulgado e acessível. Ela é um processo que está aberto no tempo e no espaço, porque o conteúdo não se limita a existir em uma plataforma, mas vive porque é divulgado e disseminado em múltiplas plataformas.
“A editorialização pode ser pensada como o conjunto de condições materiais de mediação que determinam a emergência de um mundo. Ela é um acesso ao mundo que é feito com o próprio mundo”, escreve Vitali-Rosati.
Da mesma maneira que eu penso um objeto ou um sujeito, o ambiente, ou os ambientes digitais pensam esse objeto ou esse sujeito. O acesso ao rastro digital é uma inscrição, material e concreta, e não é humano.
Quem constrói no ambiente digital? Pergunto mais uma vez porque as mudanças técnicas que caracterizam a nossa época são baseadas na questão do humano e de sua relação com o não-humano, ao maquínico e ao técnico.
Fim.